“Mesmo o caos tem sua estrutura”, essa popular frase da Teoria do Caos de Henri Poincaré, que surgiu no século XIX, e popularizada por Edward Lorenz reflete a ideia central de que, mesmo na aparente imprevisibilidade e desordem, os sistemas caóticos são regidos por leis precisas. Mas o que isso tem a ver com a narração? Bom, a narração segue basicamente as mesmas diretrizes, mesmo dentro de uma história a certas leis a serem seguidas e, quando não seguidas, acabam causando o anacronismo narrativo.
O anacronismo narrativo é um fenômeno que ocorre quando elementos próprios de uma época são inseridos em contextos temporais nos quais não existiam. Embora possa ser usado de forma criativa e intencional para gerar diálogos entre passado e presente, o uso equivocado ou acrítico do anacronismo se torna um risco sério, especialmente ao analisar obras antigas ou criar narrativas ambientadas em tempos históricos.
Na crítica cultural e historiográfica, esse tipo de anacronismo é conhecido como presentismo. Ele ocorre quando se analisa o passado com base nos valores e concepções éticas, sociais e políticas contemporâneas. O problema do presentismo é que ele compromete a compreensão da complexidade das sociedades e mentalidades de outros tempos.
Podemos pegar por exemplo a crítica a autores como Homero, Shakespeare ou Gil Vicente por não incluírem discursos sobre igualdade racial ou de gênero nos moldes atuais. Além de ser completamente descabida essa crítica, pois esses discursos são modernos e não eram existentes na época, essa crítica revela a completa ignorância dos críticos sobre os autores, sobre as causas e até sobre a história do mundo.
Esses escritores estavam inseridos em contextos históricos nos quais certos conceitos simplesmente não existiam, ou se existiam eram de forma muito distinta da que conhecemos hoje. Cobrá-los por não defenderem ideias que ainda estavam por surgir é uma forma de distorcer a própria função da crítica histórica e enfraquecer a luta pelos movimentos sociais, pois isso acaba os banalizando ao inseri-los em contextos que não lhes cabe.
No campo da ficção histórica (literária, cinematográfica ou televisiva), o anacronismo também aparece de forma recorrente e, na massiva maioria das vezes, ele nem sempre é bem empregado, pelo contrário. Muitos roteiros e romances introduzem personagens com mentalidade e comportamentos tipicamente modernos em sociedades passadas, criando protagonistas que parecem deslocados de sua época, além disso, essas narrativas acabam criando uma falsa sensação de “pertencimento” a uma época em que certas classes, pessoas e raças eram apagadas e consideradas inexistentes.
Um exemplo polêmico é o da série "Bridgerton" (Netflix), que propõe uma releitura da Inglaterra regencial com diversidade racial, expressões contemporâneas e personagens que defendem ideias de liberdade e empoderamento femininos com um vocabulário e uma atitude tipicamente do século XXI. Ainda que o objetivo da série seja declaradamente moderno e não busque realismo histórico, o resultado é um híbrido estilístico que, para alguns espectadores, rompe com a verossimilhança necessária à imersão em um período histórico. Não apenas isso, mas os próprios historiadores ingleses teceram diversas críticas a isso, pois diversas fake news sobre o período regencial britânico começaram a aparecer por conta do seriado.
Outro caso discutido é o do filme "The Woman King" (2022), que dramatiza a história das guerreiras de Daomé, no atual Benim. Apesar de trazer uma narrativa empoderadora, o filme foi criticado por omitir aspectos importantes da história, como a participação do reino de Daomé no tráfico de escravizados. Essa omissão foi vista por muitos críticos como um apagamento histórico motivado por interesses ideológicos contemporâneos, o que compromete a complexidade do tema abordado.
Em um exemplo mais recente ainda, na novela “Garota do Momento” (2024/2025) da rede Globo, temos uma novela que se passa no final dos anos 1950 e que contém diversas aberrações anacrônicas na trama, ignorando contextos históricos, sociais e econômicos da época em detrimento a escrever uma narrativa mais moderna e diversa, que a primeira vista pode ser vista como um fato positivo, mas na realidade enfraqueceu a narrativa e a própria atmosfera da novela que passou longe de ser um folhetim que se passa nos anos 1950.
O uso inconsciente do anacronismo também pode gerar simplificações perigosas. Um exemplo ocorre quando se representa personagens históricos como heróis modernos, aplicando a eles uma moralidade atual que não corresponde ao espírito da época. Em muitos filmes sobre a Antiguidade ou a Idade Média, reis e generais são retratados como defensores da liberdade individual, dos direitos humanos ou da igualdade social, valores que sequer existiam como conceito organizado nesses períodos. Além disso, temos também personagens femininas sendo retratadas como emponderadas e com discursos progressistas que até meados do começo do século XX basicamente eram inexistentes e se existiam antes, eram de forma bem mais contida.
Essa abordagem pode prejudicar o espectador ou leitor ao transmitir a ideia de que o passado é apenas uma versão imperfeita do presente, em vez de uma realidade com suas próprias lógicas, contradições e estruturas. Isso empobrece a experiência intelectual e simbólica da narrativa, pois impede o encontro com a alteridade histórica, algo essencial para a reflexão crítica. Não apenas isso, mas esse tipo de abordagem acaba de certa forma causando um “emburrecimento” da população que, ao invés de olhar para o passado e aprender com ele, acaba por assistir uma modificação dele e tomar aquilo como uma verdade.
É importante notar que o anacronismo não é sempre um erro. Quando usado de forma intencional e consciente, pode ser um poderoso recurso artístico. Por exemplo, o filme "Maria Antonieta" (2006), de Sofia Coppola, usa trilha sonora punk e figurinos estilizados para criar um paralelo entre a juventude da corte francesa e a juventude contemporânea. O anacronismo aqui não pretende fidelidade histórica, mas sim uma experiência estética e simbólica. Outro exemplo bem-sucedido é o romance "Orlando", de Virginia Woolf, que mistura séculos de história com identidade de gênero fluida, rompendo com o tempo linear de forma deliberada.
Outro maravilhoso exemplo é a novela “Meu Pedacinho de Chão” (2014) em que o tempo e o espaço é rompido e ignorado de forma deliberada, causando um efeito lúdico a narrativa em que tudo pode acontecer, pois não se sabe em que tempo, espaço ou época a trama se passa. Essa novela aliás utiliza diversas inspirações para seus personagens e vestuários, desde a idade média até os tempos mais modernos. Contudo, a forma como os autores da novela criaram esse universo foi tão majestosa que em nenhum momento essa mistura causa estranhamento a quem assiste.
O anacronismo narrativo, quando aplicado sem critério ou como forma de diversidade, pode distorcer o passado, produzir interpretações frágeis e apagar a complexidade histórica das sociedades que buscamos entender ou representar. Em vez de aproximar, ele pode afastar o leitor ou espectador da realidade de outras épocas, projetando o presente como medida universal.
Por isso, ao lidar com narrativas históricas, seja em análise crítica, seja na criação artística, é extremamente fundamental cultivar consciência histórica e entender que, infelizmente, o passado não é justo, não é inclusivo e é cruel para os nossos olhos modernos. Isso não significa deixar de lado questões contemporâneas, mas integrá-las ao discurso com respeito às distâncias temporais, como por exemplo Jane Austen fez em todas as suas obras, com protagonistas feministas dentro dos contextos da época em que foram escritas. Somente dessa forma é possível construir uma ponte autêntica entre o passado e o presente, uma ponte que enriqueça o entendimento, e não que o empobreça e o apague.















