A Zipper Galeria inaugurou no dia 23 de julho, a exposição Fome do cão, individual de Ian Salamente, recentemente representado pela galeria, com curadoria de Rayssa Veríssimo, no andar superior da galeria.
As pinturas de Ian Salamente nascem de sua relação afetiva com as paisagens e os sujeitos que as habitam, no movimento entre uma cidade e outra. Se a cidade promete desenvolvimento e progresso, Ian revela o outro lado de sua face: onde a tecnologia é precária, as casas são cercadas pela arquitetura do medo e o lixo de uns serve de alimento para outros. É dessa experiência urbana que surgem suas composições, reunindo as paisagens por onde passa e os retratos daqueles com quem divide o caminho.
Em 2023, Ian deixa sua cidade natal, Cabo Frio, e se muda para o Rio de Janeiro, para ganhar a vida como pintor. Seu novo endereço são as ruas do Saara, e a paisagem que antes eram as salinas cabofrienses dá lugar ao comércio popular do centro da cidade. Entre os toldos das lojas e os cachorros de rua, a cidade, para Ian, se aproxima daquela cantada pelo Manguebeat, uma de suas influências, marcada por antenas parabólicas que apontam para um paradoxo entre desenvolvimento e consumo, aqui intensificado na figura do cachorro que se alimenta do lixo.
Os cachorros que Ian pinta vivem na rua onde ele mora, e ele frequentemente os observa enquanto se alimentam dos restos do comércio local, ao final do dia. Retratados com marcas vermelhas, esses cachorros estabelecem uma relação com a iconografia de São Sebastião, símbolo de resistência contra a fome, representado pelas flechas em seu corpo. O cachorro, então, se torna uma figura de resistência que, assim como o santo, carrega no corpo os sinais de um sacrifício diário, mas que insiste em sobreviver aos moinhos da cidade.
Entre as presenças constantes em suas pinturas estão também seus amigos, que Ian costuma retratar em quintais de casas onde, em vez de conforto, predominam grades e muros de proteção. Vestindo camisas de futebol de várzea, seus amigos são retratados sempre no corre, com o sal, o filho ou os sonhos nas mãos. Por vezes, surgem em poses de mártires que, assim como os cachorros, carregam no corpo as marcas do sacrifício diário, mas que, ao serem associadas a pinturas canônicas, também remetem ao sacrifício do próprio artista.
Suas telas são marcadas por uma paleta terrosa que evoca o sol de sua cidade natal, mas extrapolam o território pessoal para refletir sobre tantos outros contextos onde o espaço nem sempre é garantido a todos. A partir disso, Ian se projeta para um coletivo, em que toldos, antenas parabólicas e camisas de futebol de várzea se tornam símbolos de um urbano popular, enquanto o lixo simboliza as contradições de uma cidade que almeja o desenvolvimento, mas ainda opera sob a lógica da precariedade. Nesse cenário, a fome surge como metáfora de um desejo também por dignidade e reconhecimento, e o cão, como figura de resistência.
(Texto de Rayssa Veríssimo)