Desenhar o espaço e habitar a cor coloca em relação desenho e espaço, reunindo pinturas e esculturas de Aline Setton e suas investigações a partir da arquitetura. Sua exposição individual na Galeria Murilo Castro apresenta suas recentes pesquisas que, em certo sentido, recolocam a pintura em uma dimensão espacial.
A partir da materialidade da arquitetura e suas possibilidades perceptivas, Aline explora as camadas sensíveis do espaço, indo de encontro ao que Juhani Pallasmaa vai identificar como “Imagem corporificada”. Ou seja, a capacidade corpórea da imagem e seu campo da fabulação e imaginação.
Para Pallasmaa, a imagem pode ter um caráter corporificado e imaginado a partir da experiência sensorial ao evocar a imaginação formal ou material da imagem percebida. Nesse sentido, a experiência do espaço é colocada em relação entre imagem, corpo e percepção, afirmando a condição corpórea da experiência sensível da pintura.
Muito próximo também do filósofo Merleau-Ponty ao escrever sobre Cézanne, como o mundo nos toca e como tocamos o mundo, a arquitetura estrutura a “carne do mundo”. Como um verbo de ação e não como substantivo, os elementos de arquitetura nos interpelam a estabelecer uma relação corporificada com o espaço, onde:
O piso é um convite para que fiquemos eretos, tenhamos estabilidade e possamos agir,
a porta nos convida a entrar e passar por ela,
a janela, a olhar para fora e observar,
a escada, a subir e descer.
A lareira convida a nos reunir em torno da imagem acolhedora do fogo que apoia a vida,
o foco natural da vida doméstica e dos sonhos.1
Já nas pinturas construídas por Aline, esse convite à ação corporificada se traduz como desvio, como sobreposição, uma construção em relação, onde diferentes tempos e desenhos se encontram. Desse modo, a experiência sensível provocada pela artista reposiciona essa relação entre forma, matéria e imagem, construída a partir da experiência espacial.
Suas pinturas provocam uma percepção que se estrutura como um campo de conjugação dos sentidos para além da hegemonia da visão.
Podemos observar na contemporaneidade que, em muitos casos, a imagem precede a realidade e acaba se tornando um reflexo dessa mesma imagem. A realidade virtual e as imagens renderizadas artificializam a experiência da arquitetura e a colocam de modo superficial como um simples produto construído. Essas imagens produzidas não trazem a dimensão material e tátil da experiência desses espaços.
É nesse sentido que as pinturas propostas por Aline retomam a discussão da materialidade e das superfícies como condição da experiência da arquitetura. O jogo entre perspectivas e vistas que a artista articula tensiona o virtuosismo do projeto e o gesto de controle do desenho de arquitetura.
Suas pinturas propõem um desvio de uma arquitetura funcional, nos convidando a uma ação delirante frente à representação que faz dos usos dos elementos da arquitetura.
Como um processo contínuo de prática artística, as esculturas propostas por Aline exploram a dimensão da superfície da arquitetura, sua condição estruturante, o vidro e sua materialidade transparente. As imagens construídas nessa superfície acionam discursivamente a arquitetura entre o desenho e a representação.
Ao se apropriar de imagens da Arquitetura da Casa Farnsworth (1945–1951), projetada por Mies van der Rohe para a médica Edith Farnsworth, Aline sobrepõe camadas históricas e visuais em seu trabalho. Mies, arquiteto moderno, autor da expressão “menos é mais”, imprimiu em seus projetos uma relação intrínseca entre estrutura e arquitetura.
Os planos de vidro verticais e as lajes horizontais da Casa Farnsworth expressam o desenho do arquiteto e uma composição próxima à articulação neoplástica na pintura. Uma construção que se prolongou por alguns anos, cercada por divergências, e cujo custo exorbitante acabou gerando o rompimento entre cliente e arquiteto.
Entretanto, pesquisas recentes trazem a voz de Edith Farnsworth e suas tentativas de habitar a casa projetada por Mies e sua participação no projeto. Ao trazer os poemas de Edith para o seu trabalho, Aline evoca uma camada subjetiva dessa arquitetura — a experiência traduzida pela palavra, onde a casa se torna “sujeito”, ativando acontecimentos, uma camada discursiva incorporada pela artista em sua escultura.
Desse modo, esta exposição busca relacionar pinturas e esculturas da artista, aproximando o desenho do espaço como forma de construção corpórea em ligação com a camada sensória da cor como matéria. Seus trabalhos recentes, reunidos aqui, exploram as construções imagéticas e discursivas da história da pintura e da arquitetura — temas fundamentais para a artista.
Desenhar o espaço e habitar a cor busca propor uma experiência utópica da arquitetura: habitar a pintura.
(Texto de Omar Porto. Novembro de 2025)
Notas
1 Pallasmaa, Juhani. A imagem corporificada: imaginação e imaginário na arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2013. p. 124.










