Há algumas semanas, em uma quarta-feira qualquer, eu estava desfrutando de um momento de cuidado pessoal. Um verdadeiro luxo poder estar em um salão de beleza às 10 horas da manhã. Como se pode imaginar, o salão não estava cheio: algumas profissionais e poucas clientes. Quando, de repente, chega uma mulher, aparentando estar correndo contra o tempo, junto com um menino de 10 ou 11 anos aproximadamente. Rapidamente, ela veste um avental e se desculpa com a cliente que a esperava. O garoto dirige-se a um canto, senta-se em um banquinho, coloca sua mochila no chão e liga o celular. O tempo em que estive lá, esse garoto assim o ficou: hipnotizado. Provavelmente, passou todo o tempo que lá permaneceu distraindo-se com esse mágico aparelho, que transforma horas em segundos.
Senti uma pena. Não sei o que havia acontecido para que aquela manicure necessitasse chegar assim, atrasada, esgotada, trazendo consigo seu filho. Não sei o porquê daquele garoto não estar na escola, nosso moderno depósito de crianças. Sei, por identificação do seu sotaque, que ela era imigrante.
Como imigrante, sou muito consciente dos desafios envolvidos nas mudanças de países. Além de sair do seu local de origem, deixando para trás seus costumes, seus hábitos alimentares, sua cultura e seus pertences, os imigrantes experimentam um recomeço.
Como se não bastassem as barreiras do idioma, há a necessidade de se reaprender um sem fim de atividades que, usualmente, as fazemos de modo automático, sem pensar. Ir ao supermercado, ação rotineira na vida de tantas mulheres, pode tornar-se uma atividade complexa: onde estão armazenados os alimentos e/ou outros produtos que buscamos? Quais são os alimentos e/ou produtos semelhantes aos que anteriormente ocupávamos e que poderíamos utilizar como substituto e, assim cozinhar o prato cotidiano da nossa cultura? Qual a maneira adequada para se relacionar com as pessoas com as quais convivemos em situações sociais, como por exemplo, quando entramos no elevador: devo cumprimentá-las?
Em um vai e vem de novidades experimentadas na nova vida das imigrantes vai se construindo um processo de adaptação. Mesmo para as imigrações bem planejadas, esse processo de adaptação é permeado por situações estressantes que não puderam ser identificadas durante a fase de planejamento. Não haveria plano que pudesse contabilizar a complexa rede de variáveis incontroláveis que uma mãe imigrante terá que lidar. Construir uma rede de apoio passa a ser requisito fundamental para que a adaptação ocorra, mas nem sempre essa é uma conquista fácil de se concretizar. Afinal, ao mudar de país a imigrante deixa mãe, tia, irmã, a melhor amiga e todas as demais amigas em seu país de origem. A imigrante está só. Está consigo e seu núcleo familiar (se assim o tiver).
Idealmente, a busca pela rede de apoio inicia-se pelos vizinhos. Afinal, seria tão bom poder pedir uma xícara de açúcar quando você está com tudo pronto para assar o bolo e percebe que não o tem. Infelizmente, nem todas as ruas são habitadas por famílias interessadas em conhecer os seus vizinhos, muito menos a se tornar amigos deles.
Dada a falta de sorte com o bairro, melhor investir na escola das crianças. Provavelmente, as mães das amigas e amigos possam ser uma boa rede de apoio, já que estamos no mesmo curso. Se funcionar, bingo: ganhou-se o maior prêmio. Mas, e se essa rede de apoio for relativa apenas a enviar as tarefas perdidas em caso de faltas?
Igrejas e demais instituições religiosas têm sido apontadas como um positivo aspecto de apoio e suporte aos imigrantes. Estas, além de auxiliarem aos processos adaptativos, parecem contribuir efetivamente para a integração das pessoas imigrantes. Sorte grande: buscar um templo de minha religião, reencontrar a prática religiosa que havia deixado um pouco esquecida e, ainda, me integrar. Mas como o fazer quando nem na hora do Cumprimento da Paz (parte das missas católicas) as pessoas cumprimentam os desconhecidos?
Ao ler algumas reportagens em tradicionais jornais brasileiros, a vida dos brasileiros imigrantes no exterior parece ser vangloriada. As reportagens relatam a qualidade de vida, com mais segurança pública, menos congestionamentos, salários mais altos e acesso a bens de consumos algumas vezes mais económicos do que nos grandes centros brasileiros (embora o custo de vida com saúde e alimentação usualmente seja maior).
Esses aspectos podem até ser verdadeiros a depender do local para o qual se imigrou, mas os desafios cotidianos, experimentados nas pequenas coisas da vida, essas que usualmente não valorizamos, no entanto, tecem as entrelinhas de nossa jornada, constituindo-se como a própria vida, são tão grandes que vencê-los torna-se a prioridade número um dos imigrantes, impedindo-os de realmente desfrutar os aspectos comumente apontados como positivos.
A realidade da vida do imigrante é bem mais dura. É um dilema constante entre ser quem se é e se tornar quem se necessita ser. É o malabarismo entre manter a própria cultura, o idioma materno e a alimentação que conforta o coração, com a aprendizagem de uma nova cultura, que vai além norma gramatical, necessitando-se entender o modo como as pessoas utilizam a linguagem.
Para as mulheres imigrantes, a maternidade pode ser ainda mais desafiadora. Algumas necessitam trabalhar muito, sujeitando-se a longas jornadas laborais, na maior parte das vezes realizadas longe dos bairros em que moram. Destas, mesmo quando formadas em nível superior, algumas necessitam aceitar atuações mais simples, como o caso da engenheira civil imigrante que trabalha como recepcionista no salão de manicures que frequento. Tramitar e validar seu diploma universitário no novo país requer um investimento financeiro alto, na maior parte das vezes distante das possibilidades de muitos imigrantes.
Há, também, as mulheres que, justamente pela falta de rede de apoio, deixam de atuar profissionalmente para poder criar os filhos, dado que pagar uma creche ou à alguma ajudante para cuidar das crianças pode ser custoso e não compensar a saída da mãe da casa para o mercado de trabalho. Teço, neste paragrafo, três pequenos exemplos de situações relativas à maternidade vivenciada pelas imigrantes. No entanto, é necessário lembrar das que sofrem abusos domésticos, das que são abandonadas pelos parceiros, dentre tantas outras histórias.
Essa reflexão aqui compartida com você, leitor, desenrolou-se após o momento de empatia em relação à manicure e ao seu filho. Quantas outras crianças e adolescentes são educados um pouco à parte da sociedade em que vivem, justamente por não compartilharem os mesmos vínculos e histórias que seus companheiros originários do local em que habitam? Crescer e se desenvolver como pessoa em um ambiente distinto é ainda mais desafiador, pois essas crianças e adolescentes recebem estímulos culturais diversos e buscam encaixá-los como se montassem um quebra-cabeça. Os desafios cognitivos e sociais são intensos, fatos que requerem maior apoio dos responsáveis que os cuidam.
Segundo estudos1, o bem-estar dos responsáveis pelas crianças e adolescentes está diretamente relacionado ao bem-estar e ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. No entanto, como brevemente relatado neste texto, os cuidadores das crianças imigrantes também estão vivenciando momentos complexos de mudança e adaptação. Quem cuida dos cuidadores imigrantes para que estes possam zelar por seus filhos?
Aparentemente, hoje quem cuida dos cuidadores imigrantes são as redes sociais. Muitas vezes, estas são o acalento distrativo tanto para os adultos cuidadores, quanto para as crianças e adolescentes. Assim, a vida passa, a saúde mental e o bem-estar se dissipam e a sociedade vai caminhando sem saber para onde se vai.
Nota
1 Como exemplo, pode-se comentar o estudo sob coordenação do pesquisador Phil Fisher do Stanford Center on Early Childhood.