Sempre questionamos o tempo. Faz parte da travessia da vida. Mas, o tempo sempre será o maior enigma de todos os tempos. Por isso, como devemos construir uma sociedade criativa? Depende de quê, e de quem, essa construção?
Disse Foster Gamble em seu documentário - Prosperar, o que será necessário? que “não somos um erro, apenas estamos errado.” Então, sempre buscaremos a prosperidade no cotidiano das culturas populares.
Sabia que é no cotidiano que a cultura acontece? Há nele a efervescência da ingenuidade sofisticada para desabrochar a curiosidade. Digamos que descobrir o incomum no repetido não é tarefa para os desavisados. Há de se considerar uma certa sensibilidade. A ambiência na vida cotidiana requer pensar no interacionismo simbólico. Ou seja, é como a vida estimula os pensamentos da complexa ação humana em um sistema. Assim, “os interacionistas Berger e Luckmann (2011, p. 36) discorrem que: O mundo da vida cotidiana ‘[...] é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles’.”
Esse mundo da vida cotidiana é um mundo de várias combinações e facetas. Onde a cultura faz sua dinâmica. São os costumes, o uso das plantas medicinais, o uso da terra, o uso das comidas, o uso das narrativas com suas técnicas que revolucionam a sociedade. Com criatividade as culturas populares reinventam o manejo das coisas para sobrevivência no dia a dia.
A partir das tradições orais vivas, responsáveis por novos imaginários, surgem novos caminhos para compreender a oficina da vida. Para tanto, os estudos relacionados às culturas populares ajudam a desvelar os segredos das relações sociais sobre o sagrado e o cotidiano na vida das pessoas. Reunindo um estranho alinhamento entre a centelha divina no imaginário em ação. E, tudo isso acontece na maior riqueza que temos, no tempo!
O tempo sinaliza as fases e as faces da lua, bem como estratégias e metas cumpridas ou não, num ritual de contratempos exóticos do mundo na vida cotidiana. Vale ressaltar que os seres humanos procuram sempre por algum modelo ou manual de sobrevivência na terra.
Você sabia?... Era assim que os almanaques em seus folhetos registravam as curiosidades. Talvez os almanaques sejam a ancestralidade da internet, ou quem sabe um entretenimento que se popularizou porque evidenciava um livro de utilidades para o cotidiano das pessoas. Os almanaques de farmácia como o caminho da saúde, o almanaque do biotônico, o informe anual, guia prático da saúde, a saúde da mulher entre outros, trouxeram antes da internet o mundo da vida cotidiana com informes sobre utilidades, uso da terra, cartas enigmáticas, calendário, palavras cruzadas, histórias, provérbios, charadas, piadas, curiosidades, entretenimentos, pensamentos, farmácia do lar, dicas para lavoura e agricultura, dicas para a pele, e vários informes com propagandas e ilustrações indicando um novo tempo para velhos costumes. Mas, como surgiram os almanaques?
De acordo com o historiador Jacques Le Goff (1996), o primeiro almanaque surgiu na Europa por volta do ano de 1455. Logo após esta data, em 1464 surgiu o Almanaque da Corporação dos Barbeiros, e em 1471, o Almanaque Anual. No tocante a França, o almanaque apareceu ligado a leitura de colportage, sendo o Le Grand Calendrier Compost dês Bergers,de 1471, o mais importante e popular almanaque francês. Nos séculos XVI e XVII, os almanaques passaram a circular amplamente na Europa, tendo seu interior definido pelo calendário, pela astrologia, utilidades e entretenimento. Porém, a partir do século XVIII, eles foram ganhando uma nova roupagem, diferente da anterior, cuja forma padrão era in-quarto, com oito páginas de um papel não muito bom e com gravuras grosseiras.
De origem árabe a palavra almanaque significa o "livro do saber no tempo". Depois do dilúvio, os egípcios sentiram necessidade de registrar nos tijolos e pedras suas vivências, depois com a invenção da imprensa, os almanaques se popularizaram. “Segundo a velha tradição talmúdica, dois sábios, filhos de Seth, a divindade egípcia, buscaram salvar a ciência até então constituída do Dilúvio, gravando sobre tijolo e granito o Livro de todo o saber, e este nada mais era que um almanaque (Radich, 1983).
Apesar da origem lendária, o al‐manaj tem existência sublinhada entre os povos antigos. No Brasil, com a chegada da família real por volta de 1808, com a introdução da imprensa régia, os almanaques começaram a circular, com informes sobre viagens, administração e vida nas cidades. Voltado para o cotidiano da pessoa comum, os almanaques foram responsáveis por transformar o imaginário nas culturas populares. De grande valia, eles conseguiram criar e estimular as pessoas em seu cotidiano. Foi uma antena que proporcionou transformação para o dia a dia dos seres humanos. Funcionavam também como filosofia de vida, em um almanaque de 1943 sobre a saúde da mulher, confeccionado na gráfica Mauá do Rio de Janeiro, Brasil, na página 25 tem assim
Pensamentos dos outros - Poucas vezes deixou de se arrepender, quem se aconselhou com a indignação, por mais justa que ela fosse. (Jerônimo Ozorio); A virtude se perde no meio da cobiça, bem como os rios se perdem no mar; A hipocrisia é uma certa homenagem que o vício rende à virtude… Se a imprudência estivesse só de um lado, pouco tempo durariam as contendas; Se as velhas tivessem forças, e os mancebos prudência, tudo iria bem no mundo.
Cabe ressaltar que, muitos almanaques tinham cunho patriarcal, as mulheres vinham sempre em segundo plano. Mesmo sendo uma política sanitarista, serviam de guias e traziam importantes registros históricos da época, eram uma pequena enciclopédia do imaginário cotidiano dos povos. Os responsáveis por disseminar os folhetos no Brasil foram os irmãos Laemmert e Garnier, que eram influenciados pela cultura francesa, pois em 1808, 84% da população não sabia ler.
Pequenos textos com uma imagem de uma criança ou adulto, destacavam a eficácia do uso dos medicamentos. “Nas feridas de todo o gênero, rasas ou profundas, crônicas ou recentes, grandes ou pequenas, use remédio que desinfeta, faz cessarem as dores, evita a supuração e apressa a cicatrização: pomada Boro Borácia! Os remédios vinham acompanhados da cura em ação.
Para se ter uma saúde perfeita, os almanaques evidenciaram pomadas, garrafadas, solução de extração e meizinhas milagrosas para todo tipo de enfermidades. E os conselhos? Os conselhos úteis para as donas de casa promoviam uma performance da mulher moderna e se assemelham muito aos de hoje que aparecem nas redes sociais como no Instagram. Era o melhor conselheiro para as doenças mais comuns! Em 1961, o almanaque do Biotônico Fontoura registrava, “Dor de estômago, leite de magnésia Fontoura. Queimaduras e feridas, Trionfon pomada. Infecções Urinárias, Urogenital granulado. Falta de apetite, água Inglesa Fontoura, entre outras dores.
Tudo era pensado para compor o almanaque relacionado para cada mês do ano. E o tempo sempre estava presente para um futuro próximo. “Pequenos hoje, homens amanhã!" As pílulas de Foster, as antibilosas de Doan, entre outros remédios com sobrenomes das famílias que produziam os referidos medicamentos. Até métodos para escalar as árvores, umedecer selos, remover tampas apertadas, eram registrados nos almanaques. Um verdadeiro guia para o cotidiano.
Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não têm ainda hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.
(Machado de Assis sobre a invenção dos almanaques)
Então, por que as pessoas gostam de contar suas vivências, suas práticas cotidianas? Somos seres sociáveis. Veículo de informação básica, o almanaque funcionou como fonte de conhecimento para o cenário cotidiano na popularização do saber. Muitos deles chegavam clandestinamente nas bagagens dos viajantes e marinheiros de outras nações. E, não eram bem vindo pela corte portuguesa.
A escritora Margareth B. Parker escreveu o livro Histórias e Leituras de Almanaques no Brasil ressaltando os almanaques como instrumento para o desenvolvimento do país. Os almanaques de cordel foram fabricados por Olegário Fernandes, Vicente Vitorino e José Costa Leite, entre outros, que serviram para contribuição de esclarecimento de dúvidas da população. Mas foi com Aparício Torelli, que o deboche, a sátira, o riso fez-se presente nos Almanaques.
O famoso humorista, Barão de Itararé que assinava Aporely, trouxe o escárnio, o riso para os almanaques, criando um senso crítico para evidenciar os acontecimentos. Ele trouxe a crítica política, desenvolvendo uma consciência questionadora. Então como somos lúdicos, o Barão de Itararé utilizou o humor na mídia para discutir os efeitos do poder.
Algumas máximas do barão de Itararé refletem no cotidiano das pessoas: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada." "Quando pobre come frango, um dos dois está doente." "Tempo é dinheiro. Vamos, então, pagar as nossas dívidas com o tempo." "O fígado faz muito mal à bebida." "Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados." "Para este mundo ficar bom, é preciso fazer outro." "Quem foi mordido por cobra tem medo até de minhoca." "Sabendo levá-la, a vida é melhor do que a morte." "O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro." "Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato." Digamos que para uma boa informação, a dose de humor vai configurar uma boa estratégia de análise do fato.
Os almanaques trazem um mergulho no passado num salto para o futuro. O poeta paraibano Jessier Quirino em seu poema - Vou-me embora pro passado retrata muitas coisas que remetem aos almanaques .
Vou-me embora pro passado
Lá sou amigo do rei
Lá tem coisas "daqui, ó!"
Roy Rogers, Buc Jones
Rock Lane, Dóris Day
Vou-me embora pro passado…
Se o almanaque fez as culturas prosperarem ele foi importante para o universo imaginário do cotidiano das pessoas na promoção de uma sociedade mais criativa. Os almanaques deveriam ganhar uma exposição unidos à Inteligência Artificial. Ficaria uma supimpa! Podemos dizer que a preocupação com as culturas populares do Brasil aparecem nos almanaques que demonstra um fascínio pelo livro do saber na oficina da vida.
Assim as semanas, assim os meses, assim os anos. E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida.
(Machado de Assis)