Tenha medo de não escrever.
(Anne Lamott)
Para a maioria das pessoas, escrever não é algo tão simples ou espontâneo. Vamos comparar o medo da página em branco com o medo de falar em público. Em ambas as situações, as palavras desaparecem do nosso vocabulário. Gritamos internamente por uma ajuda, uma salvação, e nada parece ouvir nosso apelo.
Quando escrever ou falar envolve ainda uma situação em que estamos sendo testados ou monitorados, nosso corpo pode ter um jeito próprio de lidar com isso. Nossos sentidos vacilam; para alguns, a garganta seca, os ombros se retraem, as mãos tremem. Alguns têm vontade de sair correndo, de ir ao banheiro; outros começam a suar como se tivessem recém-saído de uma aula de spinning.
Independentemente do sintoma que se possa ter, podemos nos sentir frustrados e desejar nunca mais voltar àquela situação. A partir disso, reforçamos a crença de que não somos aptos a escrever ou falar em público, pois não temos o dom das palavras, sejam elas escritas ou faladas. Ao acreditarmos nisso, abrimos mão de um recurso valioso que todos possuímos: a capacidade de contar nossa própria história, de escolher as palavras que desejamos usar, de destacar ideias, acontecimentos e sentimentos que melhor traduzem aquilo que queremos dizer.
Nesse texto, quero explorar o ato de escrita. Escrever é uma habilidade que pode ser aprendida e aprimorada ao longo do tempo. Assim como qualquer habilidade, exige prática, treino, esforço e experimentação, envolvendo erros e acertos. Não existe um método universal que funcione igualmente para todas as pessoas. Nesse contexto, Howard S. Becker1, autor de “Truques da escrita”, ressalta que uma das falsas premissas que travam as pessoas na hora de escrever é a de que há Uma Única Maneira Certa” para começar ou organizar um texto.
Portanto, a partir de algumas leituras sobre o tema, gostaria de compartilhar algumas dicas que me auxiliam na hora de começar a escrever um texto.
Comece descompromissado
Você passou planejando horas a conversa perfeita com alguém, mas no momento do encontro o resultado não foi como esperado? Em outra ocasião, encontrou casualmente alguém conhecido e ao conversar sobre diversos assuntos aleatórios sentiu que o diálogo se desenvolveu melhor do que se tivesse sido planejado? Analogamente, começar o primeiro parágrafo de um texto como um encontro descompromissado com o papel em branco pode facilitar esse processo e diminuir a sensação de insegurança. Becker1 sugere que nesse momento se escreva qualquer coisa que venha à cabeça, sem recorrer a esboços e notas e “[...] sem se preocupar em dar um passo errado”. Segundo o autor, nesse processo inicial, é muito mais efetivo escrever um rascunho do que continuar preparando e pensando sobre o que vai escrever quando iniciar”.
Além disso, saber que qualquer frase pode ser reescrita, contestada ou eliminada possibilita mais liberdade a quem escreve. Ao escrever livremente, as pessoas descobrem que têm pequenas variações e versões do que querem dizer, em vez de tantas opções como temiam.
Troque a inspiração pela curiosidade
Algumas pessoas podem acreditar que o texto perfeito virá mediante uma inspiração divina. E há razão para isso. Essa ideia tem raízes na imagem do gênio criador reforçada no Romantismo. Naquele contexto, gênio era o sujeito que criava livre e espontaneamente, não se deixando guiar por regras ou modelos2, pois era dotado de uma capacidade extraordinária e inata para a criação. Porém essa noção popularmente difundida desconsidera o trabalho árduo de escrita e rescrita de um texto, que envolve muitas outras fases e não apenas inspiração, como pesquisa, diversos rascunhos, tempo e dedicação, revisão e reescrita. Desse modo, um dos perigos dessa crença é afastar muitas pessoas da escrita por não se sentirem tão predestinadas à genialidade.
Uma opção mais certeira que esperar a inspiração é ir atrás dela, mobilizando a curiosidade sobre o mundo. Para Anne Lamott3, *escrever é aprender a prestar atenção e a comunicar o que está acontecendo”.
Por isso, preste atenção naquilo que acontece ao seu redor, seja no trânsito, no supermercado, no trabalho ou em qualquer outro lugar. Para escrever “A pediatra”, por exemplo, a escritora Andréa Del Fuego afirmou em entrevista ao programa Provoca, da TV Cultura, ao apresentador Marcelo Tas no ano de 2021, que tinha como hábito observar os remédios que as pessoas compravam na fila da farmácia ao mesmo tempo em que pesquisava no Google para que doença eles eram receitados.
Seja original acima de tudo
Para ser original, não é preciso criar uma obra-prima, inventar algo nunca escrito antes ou escrever com palavras inusitadas. Os leitores valorizam textos que apresentam um modo singular de contar ou refletir sobre algo. Por isso, independentemente do gênero que for escrever, traga suas ideias, vivências e reflexões sobre o tema. Escrever sobre aquilo que vivenciamos será sempre uma experiência inédita, pois dificilmente alguém terá vivido exatamente da mesma maneira, não é mesmo?
Cuidado com o uso exagerado de ferramentas de Inteligência Artificial Generativa, como o ChatGPT, por exemplo. Elas podem ser grandes aliadas na hora de gerar e aprimorar ideias, dar feedbacks e auxiliar no processo de escrita. No entanto, lembre-se de que você é um ser único, com uma história única, então por que não explorar isso na construção do seu texto? Vale refletir sobre uma citação de Samuel Johnson, por sinal frequente nas epígrafes de trabalhos acadêmicos, que diz o seguinte: "O que é escrito sem esforço, em geral é lido sem prazer." Em resumo, não deixe que apenas uma ferramenta escreva por você. Assuma a autoria de seu texto, coloque nele aquilo que o difere de outros textos e autores, seja uma experiência pessoal, uma referência que considere relevante, um ponto de vista particular, uma crítica, uma metáfora, algo singular do seu modo de escrever, nem que seja um erro de português!
Notas
1 Howard S. Becker. Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e artigos. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
2 Rosenfeld, Anatol; Guinsburg; J. Romantismo e Classicismo In: Guinsburg, J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985.
3 Lamott, Anne. Palavra por palavra: Instruções sobre escrever e viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.