Tudo começa como acaba. Em nós.
Com a idade, aprende-se a dar importância a outros pormenores. Acordar sem dores nas costas, pagar as contas sem tropeçar em dívidas, ter vizinhos sossegados que não arrastem móveis pela madrugada, saborear um café em paz numa manhã de sol a espreitar por entre os estendais. Há um prazer silencioso nas pequenas rotinas, uma espécie de segredo cúmplice com o tempo que se instala nos gestos repetidos, na previsão dos ruídos, no acerto das manias.
Às vezes, leio poesia ou escrevo na pausa do almoço. Os versos deslizam entre as mãos como se fossem fios de um tecido antigo, e eu sigo-os, invisível, um caminho de silêncio que se faz discreto, quase clandestino. Aceito os pequenos milagres que a vida, inadvertidamente, por descuido ou compaixão, nos concede. E é nesse intervalo, que antecipo a tua ausência. Nos passos que se afastam, na curva da rua onde já não dobro, na extensão da minha memória que vai apenas até ao bloco em que tomo notas, um quadrado de papel em branco que me olha com a paciência de quem sabe esperar.
Tudo tem um tamanho proporcional à nossa angústia. O amor, bendita fadiga que acalma, arrastou-nos a viver juntos até ao dia em que o amor já tinha mais tempo de história que de vida. E então, ficámos ali, presos num interregno, o amor um acervo de recordações que se acumula nas prateleiras da memória, entre bilhetes de cinema e chávenas lascadas. Interrompo o pensamento e volto à observação do espaço que me rodeia: a mulher que passa por mim a chinelar, um ruído de sola gasta a arranhar o passeio. Sacou de uma cadeira e sentou-se perto, puxou de um cigarro com a destreza de quem já o fez mil vezes e afivelou aquela expressão de quem pensa na vida, como se o acto de fumar fosse um pretexto para revisitar mágoas antigas, inventariar desejos por cumprir.
De repente, uma nuvem mais carregada começou a desfazer-se num aguaceiro intenso. A água a bater nas chapas dos carros estacionados, nos caixotes do lixo encostados ao muro, um tamborilar de chuva que se entranha nas varandas. Uma mulher de meia-idade passeava um cão que decidiu agachar-se e fazer cócó, a palavra a insinuar-se na mente como um acto de resistência contra o ridículo dos dejectos caninos. Talvez tenha usado esta expressão para ser mais gráfico e evitar o embaraço, ou simplesmente porque as palavras são uma verdade à espera de voz. A mulher tentava apressá-lo, olhava para o céu, resmungava baixinho, mas o bicho, indiferente ao aguaceiro, fazia cócó com toda a calma do mundo. Quando acabou, ela enfiou a mão num saquinho de plástico, recolheu os dejectos com um gesto rápido, quase mecânico, e foi-se embora, arrastando o cão pela trela molhada.
Olho para a cabine telefónica onde, por hábito, deixo livros para que alguém os leve. Carla Madeira, Giovana Madalosso, dois exemplares que desapareceram sem eu ter dado conta. Não sei quem os levou. A cabine, vazia, é agora apenas um aquário de vidro sujo, um esqueleto metálico onde as páginas já não se acumulam. No café onde leio poesia na pausa do almoço, alguém discute a retenção de IRS sobre as pensões, a voz áspera de quem já perdeu as ilusões.
Noutra mesa, uma mulher em pose despreocupada conversa com as amigas, enfiada num vestido azul, justo e decotado, um cinto à pirata que lhe aperta a cintura e lhe dá um ar de contrabandista elegante. É pequena e magra, pele pálida, cabelo claro e fino, a boca expressiva e o olhar exageradamente aberto, como se estivesse sempre à espera de uma revelação. Olhei-a sem nota de avaliação, antes expectativa, e minutos depois um carro parou em segunda fila, buzinou duas vezes, uma cadência ritmada de quem está habituado a ser esperado. Ela levantou-se, devolveu-me o olhar num reflexo, como quem se despede sem saber, e entrou no carro. As amigas fizeram uns remoques sobre as companhias com que ela andava, os risos abafados entre goles de café, e a conversa descambou para o facto de detestarem ir ao supermercado e pegar no único carrinho livre com a pega ainda quente das mãos do cliente anterior. Imaginavam doenças de pele, micróbios, eu sei lá.
Decididamente, fechei o livro de poesia e fixei-me nas conversas. Ora sobre o modo de fazer caracóis com sal e orégãos, ora sobre a vizinha que só estendia roupa de ginásio, nem uma cueca, nem uma camisola. Depois, discutiam o atraso no reembolso do IRS, e lembrei-me que ainda não tinha feito a entrega. Também eu dependia dele para pagar o IMI.
A pausa está quase no fim. Mais um esforço para acabar a jornada de trabalho e regressar a casa cedo, se o trânsito o permitir. Agora que chegou o verão e a casa inteira acolheu o perfume dos dias, a nostalgia era uma árvore com o teu nome inscrito na raiz. Um mergulho no teu corpo com a escrita das minhas mãos até ao anoitecer, as pedras a exalarem o hálito das gárgulas em vigília silenciosa, enredado no ardil das palavras, na soberba vontade de saber de que matéria era feita a realidade ou o infinito.
Do infinito não tinha memória, experiência ou distanciamento. Mas a realidade, essa, sabia eu bem onde estava: no canto superior direito do IRS, onde preenchia o número de contribuinte.