Abro o caderno.
Esplanada, frio, sol, reformados a jogar às cartas, algum trânsito, eléctricos a passar, transeuntes (sempre gostei da palavra transeunte), mesa, buzinas, café, pastel de nata, o ronco de uma mota (sempre gostei de motas), pombos, rua, prédio em frente, laboratório de análises clínicas Germano de Sousa, cigarro, revista, conversas, não se aprende nada, está frio, o Pingo Doce está cada vez mais caro, namorados, beijo, trotinete, autocarro, semáforos, um homem tosse, o outro fuma, o empregado aparece para receber, vai mudar de turno.
O declinar da tarde não trouxe melhoras, tropeço no vizinho, fiscal das finanças por obrigação, perdido na vida por afinidade, a mulher saiu de casa. O passado é uma ausência estranha que passa rente à vida dos outros deixando um rasto de histórias. Há algo de surrealista na nossa vida, um exercício evidente de memória e percepção que passa por ideias imaginárias, anatomia do medo latente em todas as latitudes do mundo. Não escapo à prelecção de filosofia e aos rankings da sua vida sexual. Para ele, os dias eram estilos de narrativa com um mundo em perda, sem moralidade, más escolhas e banalização. Quando fez quarenta anos, a contas com as dívidas, um filho pequeno e um cargo médio numa empresa onde fazia coisas de que não gostava, arranjou uma amante virtual e comprou o livro “Cheguei aos quarenta, e agora?”
E leu-o de fio a pavio em busca de uma solução milagrosa para o desnorte, ou uma explicação plausível para o fracasso. Completara quase meia vida sem dar por isso, tinha um ar frágil, uma tosse seca por excesso de tabaco e não tinha planos para o futuro nem meios para concretizar os seus sonhos. Vinha de um tempo em que muita coisa parecia mal, o respeitinho era muito bonito e a moralidade e bons costumes definiam a sociedade. A verdade é sempre violenta, sobretudo para aqueles que se negam a entender os tempos de mudança, e os tempos mudavam muito, hoje não seria problema, mas nos anos setenta, a sua prima fora apanhada a “fazer marmelada” dentro do carro de um desconhecido, ainda conseguiu casar com um noivo recauchutado de cinquenta anos, refugo inocente de um casamento sem sucesso, era meio dia e picos quando o pai, já trôpego, a deixou no altar, numa cerimónia rápida não fosse o diabo tecê-las. Menos mal porque estava calor.
Regresso a casa, aqueço o jantar processado, quem trouxe foi o Pingo Doce. A mulher está fora e o filho em Erasmus. Dou comida aos gatos, ligo a televisão, desgraças, futebol e big brothers a derreter vidas inúteis. Ouço discutir lá fora, carro em segunda fila, polícia e reboque, o prevaricador a gesticular como se fosse a vítima, alguns cães nos apartamentos ladram. Fumo um cigarro, banho e cama, daqui a pouco estou ao serviço. Homework em Lisboa, trabalho operacional em Bombaim, em Lisboa faz-se análise do trabalho operacional em Bombaim pago à peça.
Vizinhos correm pela manhã, fato de treino fluorescente, chuva miudinha, mails, mais mails, notificações, pausa, almoço, regresso, reunião, procedimentos, restart ao computador, mais análise. Sábado à tarde, volto à esplanada onde sempre escrevo, está um homem sentado muito parecido com o Sting, apetece-me perguntar-lhe como está a luta pela Amazónia, talvez na Message in a Bottle. Conversas de café, mural auditivo das redes sociais, a prima que foge com o primo, os filhos ao Deus-dará e eu pergunto-me se estes operários da maledicência alguma vez leram a Alexandra Lucas Coelho. Mesa ao fundo, no lado oposto do meu, um argumentista, um actor desempregado e mais dois amigos relembram episódios caricatos, “brancas” e cenas pífias.
A meio, uma dona de casa com um Lulu ao colo, os pombos aparecem de repente à cata de migalhas, a conversa geral é sobre o espanhol que parecia boa pessoa e degolou a família inteira, já deve estar longe, num sítio onde não façam perguntas e as pessoas não vejam televisão. A cidade está suja e cheia de gadelhudos, já não ouvia a palavra gadelhudos desde o pós 25 de Abril, o José Mário Branco e a luta anti-capitalista. Andamos sempre à roda e acabamos nos bons costumes que não aleijam ninguém, também já não ouvia a palavra aleijar, agora é magoar, os pombos tornam-se atrevidos, agora andam sobre as mesas mesmo com as pessoas. Uma ambulância passa em marcha lenta e eu lembro-me do caos nos hospitais. Um grupo de miúdos ri com vídeos do tik tok.
O sábado passa a correr, compras, aspirar a casa, ménage doméstica, portanto. Almoço, centro comercial para entrar nas lojas, ver e não comprar, um exército de voyeurs sem limite no cartão de crédito. Fast food, estacionamento, casa, Netflix, adormecer no sofá. Quatro da manhã, próstata, bexiga, casa de banho, um par de horas mais tarde pequeno almoço na marquise e café na esplanada, a conversa gira em torno do espanhol boa pessoa que matou a família em contexto de violência doméstica. Gosto da palavra contexto. Ele fugiu para parte incerta. Um homem sem linhas de expressão no rosto manda uns bitaites, futebol e política, ou a falta dela, Trump e Ventura, economia nickles, cultura zero.
Outro queixa-se que está farto da vida que tem, aos cinquenta, a mulher faz ioga em casa com uma APP brasileira e só come vegetais, ele fuma e come carne vermelha, bebe café e deprime-se porque a pele engelha, as dores persistem e o sexo mirra. A seguir há de ir para casa comer e ver televisão, ou vídeos na net.
Nova semana, carrossel, mais uma volta mais uma viagem, na copa do emprego um cheiro indescritível das marmitas variadas, o plim do microondas, a fila para aquecer a comida. Sexta-feira, em preparação para a lerda inércia psicológica do novo fim de semana, o dia nasceu cinzento, prenúncio de um cliché mais-que-estafado para o rame-rame laboral. Às cinco há fila no elevador, corridas para o autocarro, chuvisca, bloquearam-me o carro. Enquanto espero pela EMEL vejo os títulos no Google notícias, o marido espanhol assassino em contexto doméstico foi apanhado, era boa pessoa, cumprimentava sempre só não gostou que a mulher passasse tempo ao telemóvel e a filha passasse madrugadas a jogar. Vidas… Um cadáver dá-se a mais respeito.
Fecho o caderno.
Fim.