É claro que esta caminhada não foi isente de espinhos.

Mas penso que poderemos sempre enquadrá-los no jogo democrático, sendo de assinalar que nunca tivemos quer luta armada no nosso território quer as nefastas tentativas de golpe de estado que procuram subverter a ordem constitucional através da força.

Cabe registar que, quer durante o período colonial quer no pós-independência tivemos movimentos populares de cidadãos a manifestarem-se contra o poder.

A título de exemplo convocamos a revolta de Rubon Manel sob o lema Omi faka mudjer matxadu que nessa localidade da ilha Santiago enfrentou o regime colonial; e também convocamos o 31 de agosto um movimento popular contra a reforma agrária do regime de partido único ocorrido em Santo Antão, ilha predominantemente agrícola, no ano de 1981.

Alias a resistência cultural também foi sempre muito musculada em Cabo Verde e quer através da música quer através da literatura e outras manifestações artísticas os cabo-verdianos expressaram suas revoltas.

De assinalar que ritmos musicais proibidos no regime colonial adquiriram toda pujança no pós-independência e são hoje o som das ilhas ao lado da morna e da coladeira. Refiro-me aos ritmos de inspiração africana como o batuque, tabanca e funaná que hoje brilham nos palcos nacionais e internacionais.

Igualmente a língua cabo-verdiana que foi proibida nos espaços formais no tempo colonial hoje é língua de uso generalizado a par do português, embora ainda falte a sua consagração constitucional como língua oficial que efetivamente é.

Não posso fechar estas reflexões sem realçar que a alternância política na governação do país foi uma das maiores conquistas de Estado de Direito Democrático de Cabo Verde. Sabemos todos que as tentações hegemónicas sempre acompanham o exercício do poder e apenas eleições livres em que o povo se expressa sem medo podem impedir a formação de autocracias, ainda que travestidas de democracias. Também o facto de em Cabo Verde o presidente de um partido não poder ser concomitantemente Presidente da República vem contribuindo para o reforço do estado de direito Democrático.

Os desafios continuam a ser, contudo, imensos.

A eliminação da pobreza extrema que hoje ainda atinge 2,5% da população, o combate à pobreza que atinge 20% dos cabo-verdianos tem sido primordial para as sucessivas governações; o combate ao desemprego sobretudo jovem, o trabalho digno, o desenvolvimento da agricultura e da indústria, a sustentabilidade económica e até a modernização digital estão na agenda da governação e dos vários setores da sociedade. E é imperioso um combate cada vez mais contundente ao abuso sexual infantil e a VBG.

Conclusão

Permitam-me concluir com uma nota pessoal própria da escritora que sou.

É facto assente que em Cabo Verde a Nação precedeu a formação do Estado. Ora um dos setores que, reconhecidamente, proporcionou tal fenómeno foi a literatura.

Cabo Verde sempre teve um escola de literatos que lançaram as bases idiossincráticas da nação crioula.

Embora o registo histórico seja preponderante ou exclusivamente masculino, hoje, com o combate ao memorícidio, constatamos que as mulheres também estavam lá.

A obra das mulheres escritoras caboverdianas faz com que o registo histórico-literário das ilhas não seja exclusivamente masculino durante a longa noite colonial. A escrita das mulheres prova que as mulheres sempre existiram e foram elas o esteio da nação caboverdiana.

Anónimas, é certo, não reconhecidas, ignoradas até, mas foram elas as mulheres que levedaram as ilhas para o fruto que hoje orgulhosamente colhemos.

Elas desbravaram os montes, plantaram as achadas, colheram o grão e coseram o pão com que se alimentou o povo das ilhas.

Mais, elas enfrentaram o poder, combateram a fome, driblaram a morte.

Mas, na verdade, só tiveram a existência reconhecida quando ousaram lançar ao vento das ilhas a sua palavra dita e escrita, ainda que enfrentando todas os temores e os silenciamentos.

E finalmente chegamos nós, que quebramos todas as amarras, que ousamos abrir todas as comportas, que não nos calamos perante nenhum perigo e que assumimos desassombradamente o silêncio que à volta de nós se fechou, porque nos sentimos capazes de nós mesmas quebrar o silêncio e mais uma vez pela palavra, sempre pela palavra, ousamos dizer que aqui estamos e a palavra também é nossa!

Concluo assim agradecendo, enquanto caboverdiana, enquanto mulher, enquanto escritora, de terem tido a amabilidade e a generosidade de me convidar para esta conversa sobre os 50 anos de independência do meu país.

É uma história rica em que eu tive a felicidade de participar plenamente desde o início até agora e por isso o meu testemunho está eivado de orgulho pelo glorioso processo de reconstrução nacional que realizamos e, sobretudo, por o meu país ter procurado trilhar sempre o caminho do bem, sem cleptocratas nem ditadores, com baixos índices de corrupção e numa busca constante pela boa governação e bem-estar do povo caboverdiano.

Orgulho-me por fazer parte de um povo que vem construindo o seu caminho e não se deixa submeter por qualquer poder.