No presente trabalho, apresentamos a análise da obra São Bernardo de Graciliano Ramos, lançada na data de 1934, que se concentra na segunda fase do modernismo brasileiro. Neste momento, o Brasil passava por transformações sociopolíticas envolvendo o êxodo rural, a situação do nordeste brasileiro afetado com secas periódicas gerando pobreza e as tentativas de sobrevivências diárias do povo nordestino. Na literatura brasileira surgem poetas que trazem essa dramática temática regional, entre eles Graciliano Ramos, usando de um estilo claro e objetivo, deixando de lado o sentimentalismo.
Em São Bernardo, o narrador-personagem Paulo Honório descreve a sua história no interior da cidade de Alagoas desde a infância até se tornar um latifundiário. Trabalhava como guia de cegos e vendia doces para garantir a sua sobrevivência. Viveu sua infância aos cuidados da dona Margarida, mulher mais velha, também doceira.
Aos 18 anos, Paulo Honório cometeu seu primeiro crime: esfaqueou João Fagundes por ciúme do seu envolvimento com Germana. Foi mandado à prisão por quatro anos, onde aprendeu a ler com um sapateiro chamado Joaquim. Depois de cumprir sua sentença, vai à luta para conseguir, a qualquer custo, a fazenda São Bernardo. Fazendo amizade com o herdeiro Luiz Padilha, ele trama uma armadilha para que ele perca a fazenda através de maus projetos, levando-o à ruína. Padilha, descontrolado com os negócios, resolve vender a fazenda para Paulo Honório. De posse da propriedade, Paulo Honório consegue erguê-la.
Porém, não satisfeito, arma para o fazendeiro vizinho mandando assassiná-lo para conseguir comprar a sua fazenda aumentando assim o seu patrimônio. Para crescer ainda mais, faz relacionamento de amizade com o jornalista Gondim e o advogado Nogueira para conseguir garantia de investimentos em maquinário para plantação de algodão e mamona, construir estradas e escolas.
Diante de toda essa riqueza construída, P.H resolveu casar-se e conheceu Madalena. Esta era uma professora, culta, simples e honesta, mas atenta a tudo e justa com os outros. Assim, a vida na fazenda começa a mudar, Madalena se interessa pela vida dos empregados, começa a interferir na opinião da vida precária dos trabalhadores e faz com que Paulo Honório sinta-se incomodado com a atitude dela, gerando uma série de crises no relacionamento do casal.
Paulo Honório torna-se cada vez mais agressivo, costumava dominar a todos e não conseguia dominar a própria esposa, nem o nascimento do filho consegue controlar a personalidade de Madalena. O livro descreve cenas de ciúmes, acusando a mulher de ter outro companheiro, o que acaba desanimando sua mulher que fica doente e acaba cometendo suicídio. Após a sua morte, a fazenda entra em declínio, P.H sente que os amigos se afastaram e passa por dificuldades nos negócios. O enredo da obra termina com Paulo Honório sofrendo com o seu passado. Amargurado, ele toma consciência dos seus atos e escreve a sua história ciente da perda dos valores éticos e morais e as consequências que provocou ao próximo enquanto lutava pelos seus sonhos.
Transformações políticas e sociais no Nordeste Brasileiro
Sob a perspectiva de Moura (2006), São Bernardo, de Graciliano Ramos, um dos expoentes da segunda fase do modernismo brasileiro, oferece um retrato incisivo das transformações políticas e sociais do Brasil, com um foco particular nas dificuldades enfrentadas pelo Nordeste. Publicado em 1934, a obra insere-se num período de intensas mudanças no país, marcadas pelo êxodo rural e as severas consequências das secas periódicas que assolavam a região, exacerbando a pobreza e a luta pela sobrevivência.
Sociedade, geografia e poder no sertão
A narrativa construída na obra é intrinsecamente ligada ao cotidiano sociopolítico do Nordeste brasileiro, caracterizado por uma economia agrária dependente das grandes propriedades rurais e vulnerável às intempéries climáticas. O livro reflete uma análise profunda das relações de poder, onde Paulo Honório encarna o controle total sobre a fazenda e as pessoas ao seu redor, refletindo a ideia foucaultiana de poder como uma força disseminada em todas as esferas sociais (Foucault, 1979).
De acordo com Bergamini (2008), dentre os dilemas enfrentados pelos cidadãos, a seca, um fenômeno recorrente na região, é mais do que um pano de fundo. Ela se constrói no texto com uma força implacável que molda as vidas, a construção das personagens e as relações de poder no campo. Sob a ótica de Fragoso e Florentino (2005), ainda, existe outro fenômeno geográfico presente na obra: êxodo rural, impulsionado pela falta de oportunidades de vida e pela miséria, marcado pelas consequências de um patriarcalismo histórico brasileiro, é outro tema central que Ramos aborda com profundidade e realismo.
Ética, Moralidade e a Construção das Personagens
A narrativa de Ramos, sob a ótica de Schwarz (1999), explora a dualidade entre a moral imposta e a ética pessoal, revelando as tensões entre os desejos individuais e as exigências sociais. Paulo Honório, o protagonista e narrador da história, é retratado como o sertanejo que ascende socioeconomicamente através de métodos questionáveis, refletindo as tensões e contradições de uma sociedade em constante transformação durante o período republicano brasileiro.
De origem humilde, Paulo enfrenta as adversidades desde cedo: trabalhou como guia de cegos e vendedor de doces, e passou quatro anos na prisão por esfaquear João Fagundes, um crime que marcou sua juventude. Através de uma combinação de astúcia, brutalidade e determinação, ele conquista a fazenda São Bernardo, símbolo de seu sucesso, mas também de sua tirania.
A figura de Madalena, sua esposa, representa o contraponto moral e intelectual a Paulo Honório. Sob a visão de Moura (2006), a professora é retratada a partir da sensibilidade às injustiças sociais. Isso faz reflexo direto com o ambiente brasileiro vivido por Ramos: O debate em torno da modernização do Brasil. Essa discussão, que precede a Constituição de 1934 e coincide com a publicação do romance São Bernardo, é marcada por reivindicações e confrontos ideológicos intensos do período da Era Vargas (1930-1945).
Algumas frases proferidas na obra caracterizam Madalena pelo olhar de outras personagens, refletem o clima de tensão e as amplas interpretações que o público da época poderia fazer delas. Dentre as frases pode-se citar: “Uma nação sem Deus”, “É a corrupção, a dissolução da família”, “A Igreja é um freio”, proferidas por padre Silvestre; ou “mulher sem Deus é capaz de tudo”, “Comunista” mostram os embates morais e políticos que existem no Brasil.
Questões como justiça social, direito ao voto feminino e defesa da educação laica, entre outras reivindicações progressistas, eram frequentemente reduzidas a conceitos como "dissolução da família" e "corrupção", revelando a resistência conservadora às mudanças sociais. Dentro deste contexto, Ramos faz uma construção da figura docente como crítica e sensível ao ambiente, Madalena tenta humanizar a relação entre o proprietário e os trabalhadores da fazenda, provocando conflitos com o marido.
Decadência moral e as consequências emocionais
Antônio Candido (2006) discute as contradições éticas do protagonista que, ao mesmo tempo que busca progresso, mergulha em uma espiral de desumanização e solidão. A ascensão de Paulo Honório, marcada pela exploração e pela violência, espelha a trajetória de muitos latifundiários que prosperam à custa da miséria alheia. Isso retrata as relações de poder que se construíram desde os primórdios brasileiro. No entanto, essa trajetória de sucesso material é acompanhada de uma decadência moral e emocional.
Para Bergamini (2008), após a morte de Madalena, Paulo enfrenta o isolamento e a deterioração de sua propriedade, revelando a fragilidade de um sistema baseado na força e na opressão. Outra abordagem que a obra nos permite realizar é a temática emocional. A tragédia pessoal da professora, que culmina no suicídio, é considerada emblemática a partir do ponto de vista resistência ou consequência silenciosa às opressões estruturais e patriarcais.
Considerações finais
Segundo Martins (2020), no Brasil de hoje, a exploração e a desigualdade social são ainda obstáculos para a equidade socioeconômica. Ainda existem problemas graves de concentração de terras e desigualdade no campo, das quais muitas áreas rurais enfrentam dificuldades semelhantes às mencionadas na obra. A continuidade histórica se faz evidente nos dias atuais através da luta pela reforma agrária, bem como dos conflitos de terra entre grandes proprietários e trabalhadores sem-terra.
Além disso, a exploração do trabalho também ocorre em outros setores além do campo. De acordo com Veiga (2021), nas cidades, a precarização do trabalho e da informalidade juntamente com a desigualdade nos salários são exemplos contemporâneos que refletem as mesmas dinâmicas de poder e exploração criticadas por Graciliano Ramos. A trajetória de Paulo Honório reflete a ascensão de empresários que acumulam grandes riquezas por explorar o trabalho das pessoas, destacando como a busca desenfreada pelo poder e ambição ainda resultam em desigualdade e dor.
A obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, reflete as consequências da busca implacável pelo poder e pela ambição desmedida, como visto no isolamento de Paulo Honório após ser abandonado por todos devido às suas ações. Esse abandono lembra a "cultura do cancelamento" contemporânea, explorado por Bosco (2021), em que figuras públicas são excluídas socialmente por comportamentos considerados inadequados, resultando em um apagamento semelhante ao de Paulo Honório.
A narrativa de Ramos denuncia, através de uma linguagem direta, as brutalidades do sistema agrário no Nordeste e as desigualdades que esse sistema perpetua, mostrando como o progresso material pode agravar as injustiças sociais.
Referências
Bergamini Junior, Atilio. Aspectos do romance São Bernardo. Revista eletrônica de crítica e teoria de literatura, Porto Alegre, v. 04, n. 02, jul./dez. 2008. Dossiê: Oralidade, memória e escrita. PPG-LET-UFRGS.
Bosco, Francisco. A vítima tem sempre razão?. São Paulo: Todavia, 2021.
Candido, Antonio. Literatura e sociedade. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
Florentino, Manolo e Fragoso, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia − Rio de Janeiro, c.1790 − c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
Martins, José de Souza. O cativeiro da terra. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2020.