Em textos anteriores, lembrei textos ou frases que fizeram História, que a alteraram ou que lhe definiram coordenadas accionais.
O que nos faz pensar na importância da língua. Matéria que, multiplicada e diversificada, impediu a construção do maior projecto da humanidade bíblica: a Torre de Babel. Matéria de longa busca da comunidade científica (anelante de objectividade e de neutralidade) e de incansável desejo da Europa (desejosa de se unir), a língua protagoniza uma acidentada história de ilusão e fracasso, utopia e distopia que autores como Umberto Eco (A busca da Língua Perfeita na Cultura Europeia, 1993) tentaram sintetizar e que as constrições da actual investigação científica querem reduzir ao inglês, num afunilamento que elimina progressivamente as margens semânticas do valor de uso. Um código unificador e exclusivista… A utopia de uma língua universal e, na sua impossibilidade, a da tradução universal1.
Face a tal desejo, não surpreende a resposta empreendedora dos homens. Mas, se é possível evocar abundante exemplificação de empreendedorismo positivo como o faz Umberto Eco, permito-me aqui, por contraste e divertimento, exemplificar também o fraudulento… com e através da linguagem.
… Das línguas…
Incontornáveis exemplos das inventadas para conferir consistência a mundos ficcionais, justificando até a existência da Sociedade de Criação de Língua (LCS)2, fundada em 2007, que tem por objectivo criar, promover e divulgar línguas artificiais (conlangs), com uma secção significativamente intitulada “Fiat Língua”.
Projectos para a humanidade
A “Língua Filosófica”
John Wilkins (1614-72), filósofo e teólogo inglês, tentou criar a "Língua Filosófica” (An Essay Towards a Real Character, and a Philosophical Language, 1668), universal, visando unir todas as outras línguas do mundo e facilitar a comunicação entre diferentes culturas, projecto que, apesar de não implementado, teve algum sucesso na intelligenzia sua contemporânea.
No séc. XX, Jorge Luís Borges (1899-1986) dedicou-lhe um ensaio (El idioma analítico de John Wilkins, 1942, posteriormente incluído em Otras Inquisiciones (1937–1952)), criticando o projecto em função da sua (in)capacidade de representação, recorrendo a uma imaginária e imaginada taxonomia chinesa que, mais tarde, Michel Foucault , David Byrne e outros referirão.
Projectos para a ficção
J.R.R. Tolkien (1892-1973)
É o exemplo mais emblemático de criador de línguas artificiais: J.R.R. Tolkien. Linguista apaixonado pela matéria, além de ser especialista do especialista do Old English (séc. VIII a.C.-séc. XII d.C.) e do Middle English (séc. XII-XVI) e dos c. 16 idiomas que aprendeu, inventou diversas línguas fictícias desde a sua juventude (o Animalic, o Nevbosh e o Naffarin) até criar o universo do Senhor dos Anéis, onde as multiplicou: Quenya (baseado no finlandês, no grego e no latim), Sindarin (baseado no galês), Adunaico, Westron, Telerin, Doriathrin, várias línguas Mannish, Nandorin, Sindarin, Ilkorin, Avarin, Khuzdul, Entês, Orkish e a Língua Negra, Valarin, e o Élfico Primitivo. E não esqueceu nem a fonética nem os alfabetos (o Tengwar, o Angerthas e o Sarati, p. ex.), inspirando-se, como paleógafo, nas escritas “insulares” da Irlanda do século V3.
Na verdade, em geral, as línguas eram o factor gerador na sua imaginação: a partir delas, que foi aperfeiçoando até à sua morte, ia compondo filologicamente desenvolvendo as culturas correspondentes. Por isso, considerou mortas línguas visando a comunicação internacional como o Volapuque4 (criada em 1879-80 por Johann Martin Schleyer), o Esperanto (concebido em 1887 por Ludwik Lejzer Zamenhof), o Ido (criado por L. L. Zamenhof e divulgado em 1907) e o Novial (da autoria de Otto Jespersen em 1928) exactamente pelo facto de os seus inventores não terem construídos culturas correspondentes, que as adensassem…
O seu reconhecimento internacional foi crescente, como o sinalizam, em 1972, o Doutoramento Honoris Causa em Letras da Universidade de Oxford, e a Ordem do Império Britânico.
E o seu legado é imenso em todas as manifestações artísticas (incluindo o cinema, a televisão, etc.) e científicas (desde estudos sobre a génese dos seus mundos até às gramáticas e dicionários que continuam a ser elaborados a partir deles), em geral, dinamizadas por sociedades e associações a ele dedicadas e na indústria cultural que explora os seus mundos em objectos, museus, convenções, jogos electrónicos.
Paul Frommer (n. 1943)
Antigo diretor do Centro para a Gestão de Comunicação da USC Marshall School of Business (2005-08), ligado à Bentley em Los Angeles (ex-Vice-Presidente, Coordenador de Projetos Especiais, Strategic Planner e investigador), criou a língua Na'vi para o filme Avatar (2009), dirigido por James Cameron, idioma com uma estrutura gramatical e dicionário próprios que foi ensinada aos actores e se popularizou entre os fãs do filme.
Marc Okrand (n. 1948)
Linguista especialista de línguas nativo-americanas, criou a língua Klingon para a franquia Star Trek, com alfabeto5, gramática, dicionário, história, etc. A língua é ensinada (v. Instituto de Língua Klingon, cursos áudio) e fluentemente falada por muitos dos seus fãs. Chegou a compor um libreto para uma ópera em Klingon.
Além dessa língua icónica, em 2001, Okrand criou a Língua Atlante para o filme Atlantis: The Lost Empire da Disney.
David J. Peterson (n. 1981)
Co-fundador (2007), antigo presidente (2012-14) e membro da Sociedade de Criação de Línguas, David J. Peterson criou as línguas Dothraki e Valirianas para a série Game of Thrones: d’As Crónicas de Gelo e Fogo), de George R. R. Martin: trata-se de línguas com fonologia, gramática, dicionário e alfabeto próprios, ensinadas aos atores que se expandiram aos fãs das séries.
Enfim, a lista poderia continuar, mas sigo para os anunciados casos de empreendedorismo fraudulento…
Empreendedorismo fraudulento
O Formosano
O Formosano de George Psalmanazar (c. 1679 - 1763), que conviveu com Samuel Johnson e outras personalidades destacadas do séc. XVIII. Disse-se natural da Formosa, que descreveu, cartografou e historiou com detalhes da moeda, cerimónias, festivais, roupas, comida, flora e fauna (An Historical and Geographical Description of Formosa, an Island subject to the Emperor of Japan, 17046) bem fantasiosamente, misturando matéria de relatos igualmente inventivos (de viagens, informação de civilizações aztecas e inca, descrições do Japão e da Utopia de Thomas More, etc.) e a que atribuiu uma capital singular (Xternetsa) e uma cultura complexa e estranha, embora convincente para uma sociedade que nada conhecia da Ásia…
No quadro de uma Europa em que as gramáticas começavam uma análise comparativa das línguas europeias e asiáticas que conduziu à convicção de que, em geral, provinham da indo-europeia, George Psalmanazar inventou, com arrojo, a língua formosana, com alfabeto7 e gramática próprios. Foi um sucesso! O seu livro foi publicado, traduzido (em francês e em alemão) e comentado em toda a Europa, está à venda na Amazon e acessível online, tendo sido exibido um exemplar da sua 1ª edição no Festival de Ciências de Cambridge de 2024 (exposição World of Wonders8) . Ensinou a língua na Universidade de Oxford a convite do Arcebispo da Cantuária, realizou conferências sobre ela na mesma universidade, na Royal Society, etc.
Embora os missionários que aprenderam o Formosano tenham constatado, por fim, a farsa nos contactos com a Formosa, e a tivessem denunciado, a "loucura formosana" da sociedade neutralizou durante muito tempo o alerta…
No final da sua vida, em Inglaterra, ele recebia uma pensão anual de 30 libras de um admirador e escreveu as suas Memórias de ** **, comumente conhecido como George Psalmanazar, que afirmava ser natural de Formosa9 (publ. póst. 1764-65).
Na satírica Uma Proposta Modesta10 (1729), Swift referi-lo-á como "o famoso Psalmanaazor, um nativo da ilha Formosa, que veio de lá para Londres, há mais de vinte anos” e Isaac D'Israeli, nas suas Curiosidades da Literatura (1791 ss.) menciona-o nestes termos:
George Psalmanazar, a cujos trabalhos devemos muito da grande História Universal, excedeu em poderes de engano qualquer um dos grandes impostores do saber. A sua Ilha Formosa era uma ilusão eminentemente ousada, e mantida com tanta felicidade quanto erudição; e grande deve ter sido a erudição que pôde formar uma linguagem fingida e a sua gramática, e fértil o génio que pôde inventar a história de um povo desconhecido: diz-se que o engano só foi satisfatoriamente verificado por suas próprias confissões penitenciais11.
Robert Bracey considera-o “impostor e penitente”12, Graham Earnshaw designa-o como um dos maiores charlatães da História (The Formosa Fraud: The Story of George Psalmanazar, One of the Greatest Charlatans in Literary History, 2022) e a bibliografia sobre ele com qualificações afins em título tem-se multiplicado13. Conquistou um verbete no Oxford Dictionary of National Biography e tem um site dedicado a ele (The New Psalmanazar14)…
Enfim, um Reino de Língua (Alex Eichler)15 feito.
O Javasu
Da Princesa Caraboo (na verdade, Mary Baker ou Willcocks, 1792-1864) da ilha de Javasu, no Oceano Índico, que havia sido capturada por piratas e, após uma longa viagem, saltou ao mar no Canal de Bristol e nadou à costa, surgindo misteriosamente em Almondsbury.
Foi recolhida, celebrizando-se pelo seu exotismo: sabia usar arco e flecha, esgrima, nadava nua ao luar e orava ao deus Allah-Talla, etc.
Inventou uma língua fictícia com alfabeto próprio16 a partir de palavras imaginárias e romani e uma história exóticos17. No início, contou com a ajuda de um ‘tradutor’ português (Manuel Eynesso) e o seu javasu foi “autenticado” por um Dr. Wilkinson, com recurso à Pantographia (1799) de Edmund Fry, que assim a descreveu:
um ou dois caracteres têm alguma semelhança com o chinês, particularmente o chinês cho, um junco: há mais caracteres que têm alguma semelhança com o grego, particularmente o #, # e #; diferentes publicações foram-lhe apresentadas em grego, malaio, chinês, sânscrito, árabe e persa, mas com todos eles ela parece totalmente desconhecida. A sua [da ‘Princesa’] carta foi mostrada a todas as pessoas em Bristol e Bath, versadas em literatura oriental, mas sem sucesso: uma cópia foi enviada à India-House, e submetida pelo presidente daquela Companhia ao exame do Sr. Raffles, um dos melhores estudiosos orientais, mas ele não conseguiu decifrá-la; a carta original foi enviada a Oxford, e os membros daquela Universidade negaram que fossem caracteres de qualquer idioma; alguns conjeturaram que era um javanês imperfeito; outros supuseram que era o estilo do malaio de Sumatra. Pela minha própria observação, embora não conhecesse nenhum caráter único de sua escrita, considerei-a mais parecida com uma circassiana18.
A imprensa deu-lhe toda a atenção, celebrizou-a. O que permitiu o seu efectivo reconhecimento e ser desmascarada…
A farsa foi de lugar em lugar (Inglaterra, Estados Unidos, etc.) e de encantamento (incluindo Napoleão em Sta. Helena) em desencantamento, numa acidentada história que foi contada em livro (O Curioso Conto da Princesa Caraboo, 2015, de Catherin Johnson), em teatro (encenações diversas, incluindo musicais), em filme (Princesa Caraboo, 1994, dirigido por Michael Austin e protagonizado por Phoebe Cates) e, até, em BD (2016, por Antoine Ozanam e Julia Bax), inspirando inúmeros retratos, uma estátua19 em Bristol (no Cemitério de Hebron, em Bedminster, produzida pelo escultor Getting Up To Stuff) e a marca de café Javasu20, um “instantâneo de cogumelos com baixo teor de cafeína e l-teanina para aqueles que gostam dos benefícios da cafeína sem os efeitos colaterais”.
… Às nações…
Claro que há os que venderam o que não lhe pertencia, como o prefeito Peaches O’Day, que vendeu a Ponte do Brooklyn (em Nova York, EUA) por US$ 200, ou o que, com hábil estratégia, conseguiu fazer emitir moeda legalmente (Artur Virgílio Alves Reis, 1896-1955, que obteve as assinaturas e as autorizações sem falsificações), mas, neste caso, foi um país… fictício, numa altura em que não se falava em micro-nações e em que as criações literárias se mantinham com esse mesmo estatuto (apesar da estratégia de veridição de muitas como a Utopia de Morus).
… a nação fictícia “Poyais”
David Sinclair considerou-a “a mais audaciosa fraude da História” (subtítulo de The Land that never was, 2003). Foi protagonizada por Gregor MacGregor (1786-1845), um escocês que se intitulava "Príncipe de Poyais", suposta colónia próspera na América Central, ao longo do Rio Negro de Honduras, maior do que o País de Gales, habitada por nativos amigáveis que o reconheciam como líder, com monarquia, economia moderna, exército e grandes recursos naturais. A sua ascendência, alegadamente, contava com o Clã Gregor (descendentes da antiga família real celta) e outras famílias aristocráticas, o que lhe conferia o título de Sir Gregor MacGregor Bart.
Através de uma campanha publicitária bem orquestrada sobre esse suposto novo Éden21 que descreveu encomiasticamente no guia Esboço da Costa do Mosquito, Incluindo o Território de Poyais (1822, um guia de 365 págs.), sob o pseudónimo de Thomas Strangeways, convenceu muitos a investirem em títulos, terras e cargos desse país ficcional, chegando a emitir moeda22 que poderiam usar no local.
De acordo com o psicólogo Robert Cialdini e os que o seguem, MacGregor usou os seis princípios da persuasão para conseguir o que queria e se tornar multi-milionário: reciprocidade, consistência, validação social, amizade ou simpatia, escassez e autoridade…
A “Legação de Poyais” fretou dois barcos para levar colonos para Poyais: em /set/1822, o Honduras Packet partiu de Londres com 70 colonos, incluindo médicos, advogados e um banqueiro; em 22/jan/1823, o Castelo de Kennersley deixou Leith Harbour, na Escócia, com quase 200 colonos.
No local, encontraram uma selva inabitável e, dos 240 colonos, apenas 60 sobreviveram às doenças tropicais e regressaram a Londres em 12/out/1823, explodindo a história na imprensa do dia seguinte. Teve de fugir para França, onde continuou a fraude de Poyais, já não um Principado, mas uma República: repetindo o esquema em 1825, ele tentou emitir novos títulos e ações de uma empresa poyaisiana. Descoberto, foi preso, julgado e absolvido!
Regressou a Londres e, intitulando-se Cacique da República de Poyais, tentou repetir o esquema, mas com pouco sucesso… acabou com uma pensão de antigo general da Guerra da Independência da Venezuela que o manteve na Venezuela entre 1939 e 1845.
Enfim, mantenhamos a confiança na ilimitada capacidade imaginativa e retórica do homem, ser de linguagem e de representações… não esqueçamos que a língua enoquiana/angélica desse enigmático John Dee (1527-1608/9), matemático, astrónomo, astrólogo, geógrafo, espião e conselheiro da Rainha das Fadas (Isabel I de Inglaterra), e do seu assistente Edward Kelley nos permite falar com os Anjos… ou talvez não…
Referências
1 Cf. J. Manuel Curado. A Utopia da Tradução Universal, sobre o plano de matemático português José Maria Dantas Pereira (1772-1836) descrito na Memória sobre um Projecto de Pasigrafia (Lisboa,1800).
2 About conlanging and the Language Creation Society em Conglang.
3 Tolkien, caligrafia e as escritas insulares.
4 Língua volapuque.
5 Alfabeto Klingon.
6 Psalmamazar Formosa.
7 Psalmanazar 2.
8 The Notorious George Psalmanazar: Samuel Johnson’s Unlikely Friend.
9 Memoirs of *** commonly known by the name of George Psalmanazar, a reputed native of Formosa*.
10 Uma proposta modesta.
11 Curiosities of Literature. Alguns desenhos de figuras típicas da Formosa elaborados por George Psalmanazar. Também: No Man Is an Island: Early Modern Globalization, Knowledge Networks, and George Psalmanazar’s Formosa.
12 Robert Bracey. George Psalmanazar: Imposter and Penitente, Blackfriars Vol. 5, No. 50 (Maio, 1924), Cambridge University Press, pp. 82-88.
13 The Great Formosan Impostor (1968), de Frederic J. Foley, The Pretended Asian: George Psalmanazar's Eighteenth- Century Formosan Hoax (2004), de Michael Keevak, etc.
14 O site apresenta-se assim:
The new psalmanazar is an exercise in necessary distraction. Its title honors the great fraud George Psalmanazar (1679-1763), who once convinced the world he was a native of Formosa. Most of us suspect we’re frauds; few of us will ever produce such memorable proof.
15 Alex Eichler. Kingdom of the Idiom: how George Psalmanazar Escaped From History.
16 The Great Formosan Impostor (1968), de Frederic J. Foley, The Pretended Asian: George Psalmanazar's Eighteenth- Century Formosan Hoax (2004), de Michael Keevak, etc.
17 Baker's Javasu writing.
18 Princess Caraboo from the Island of Javasu. Também: Caraboo: A Narrative of a Singular Imposition.
19 Carta de um tal Dr. Wilkinson, de Bath, em Caraboo: A Narrative of a Singular Imposition (1817), de John Matthew Gutch.
20 The Story of Princess Caraboo and Javasu Coffee.
21 Ele concedeu entrevistas aos jornais nacionais, contratou publicitários para escreverem anúncios e folhetos, investiu em músicas que estimulassem o desejo de mudança nos ouvintes, etc. Criou a Legação Poyaisiana na Grã-Bretanha com escritórios em Londres, Glasgow, Stirling e Edimburgo para vender terras e outros bens. Cf. A Fraude do Príncipe de Poyais - O Quadro Geral. Também: Gregor MacGregor: o vigarista que vendeu um país.
22 Dollar.