Você já pensou em como seriam nossas identidades culturais se a linguagem não existisse? Imaginem-se em um lugar sem registros linguísticos de um povo. Como saberíamos quais são suas crenças, valores e cultura? A linguagem reflete o mundo em que vivemos e como desejamos nos expressar, transmitindo a complexidade sócio-histórica e cultural de um povo. Ela impacta diretamente nossa percepção do mundo e de nós mesmos.

Desde a infância, nossa formação cultural é moldada por uma variedade de fatores, tanto internos quanto externos. Nosso idioma materno, por exemplo, é uma ferramenta que traz a sensação de pertencimento, permitindo que as pessoas se comuniquem e criem conexões com seu grupo. Essa comunicação estabelece interações sociais e um senso de familiaridade.

No entanto, somos indivíduos complexos e dinâmicos, frequentemente condicionados a uma relação de poder com a mídia e a política, o que torna-nos seres fragmentados.

A colonização, por exemplo, é um dos principais fatores que contribuem para essa fragmentação. Representa uma forma de dominação de um povo sobre outro, deixando legados híbridos e pressionando os oprimidos a aderirem à cultura, língua e contexto histórico do opressor. Isso dificulta a preservação da língua e dos aspectos históricos maternos.

Um exemplo de preservação cultural, apesar das influências internas e externas, é a Suíça. O país implementou estratégias eficazes e características únicas para manter a identidade do seu povo intacta. Com quatro línguas oficiais — alemão, francês, italiano e romanche —, a Suíça reflete sua diversidade cultural e fortalece a identidade linguística. Seus 26 cantões (estados) possuem autonomia significativa, permitindo que cada um adapte leis e políticas sociais conforme as necessidades de sua população.

Além disso, a Suíça protege sua identidade nacional por meio de políticas públicas que promovem a preservação cultural e a coesão social.

Com o avanço da globalização, torna-se cada vez mais desafiador manter uma identidade homogênea, dada a quantidade de informações a que somos expostos. Este bombardeio cria obstáculos em relação ao que consumimos e à maneira como podemos absorver tudo de forma consciente.

Para minimizar o impacto da globalização na identidade cultural, podemos adotar algumas medidas que preservem as tradições e fortaleçam o senso de pertencimento:

Educação cultural

Nas escolas, é essencial incentivar o respeito e a valorização da diversidade cultural do país, incorporando aspectos como valores tradicionais, línguas regionais, dialetos, costumes e celebrações típicas. Isso enriquece nosso entendimento das origens culturais e amplia nossa perspectiva sobre diferentes culturas, fortalecendo nossa identidade.

Apesar das leis que asseguram a inclusão dessas culturas no currículo, muitas escolas ainda enfrentam dificuldades para implementar um estudo aprofundado sobre culturas indígenas, afrodescendentes e outras minorias. Esses desafios podem ser atribuídos à qualidade do material didático disponível e ao suporte das secretarias de educação.

Por exemplo, o estudo da importância do Guarani para os povos indígenas muitas vezes é superficial. Além disso, festividades escolares que celebram tradições culturais são menos frequentes em escolas menores ou com recursos limitados.

Uma possível proposta seria incentivar parcerias com representantes dessas classes, como convidar pessoas indígenas para palestras, promovendo a conexão entre estudantes e tradições. Além disso, oficinas culturais e colaborações com ONGs que atuam com essas comunidades poderiam fortalecer o senso de pertencimento e a valorização das identidades culturais.

Incentivo à produção local

Apoiar produtores locais fortalece a economia e reduz a necessidade de importação, contribuindo para a diminuição das emissões de carbono e do impacto ambiental.

Atualmente, através das plataformas digitais, conseguimos estabelecer conexão diretamente com produtores locais, engajando seus serviços por meio de compartilhamento de vídeos e conteúdos. Podemos auxiliar na promoção dos serviços e produtos, mesmo que não realizemos compras diretas. Para reduzir as emissões de carbono e o impacto ambiental, uma alternativa sustentável é diminuir a distância de transporte dos produtos.

Preservação do patrimônio cultural

Preservar museus, artes e monumentos históricos e implementar políticas públicas de preservação cultural são essenciais para evitar que a modernização apague o passado.

Considere iniciativas governamentais com projetos contemporâneos de preservação cultural, como o incentivo ao turismo cultural, organizando eventos que celebrem as tradições locais. O Governo do Estado de São Paulo, por exemplo, lançou em 2005 o evento anual Virada Cultural, que promove eventos culturais 24 horas ininterruptas, como espetáculos musicais, peças de teatro e exposições de arte e história.

Desde sua criação, a Virada Cultural atrai milhares de visitantes (4,5 milhões de pessoas em 2024, segundo dados da Prefeitura de São Paulo), oferecendo espaço para artistas locais e promovendo a diversidade cultural. Isso impacta diretamente na economia local e cultiva o espirito do coletivo através de expressões artísticas.

Ações culturais por políticas públicas

Instituições governamentais podem implementar iniciativas que incentivem o consumo de produções locais, como financiar música, literatura, artes e cinema.

Editais públicos que incentivem produções culturais, cinema brasileiro e festividades artísticas podem ser criados.

No Brasil, a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, promove o financiamento de diversas atividades culturais, permitindo que empresas e pessoas físicas captem recursos com benefícios fiscais, obtendo dedução de uma porcentagem dos seus impostos ao financiar ações culturais. Sendo eles:

  • Empresas: dedução de até 4% do Imposto de Renda devido.

  • Pessoas físicas: dedução de até 6% do Imposto de Renda devido.

A transparência na divulgação dos dados sobre os recursos investidos é crucial para permitir à sociedade acompanhar como os fundos são aplicados. Além disso, políticas de fiscalização rigorosas são essenciais para assegurar que todos os recursos sejam utilizados adequadamente.

Abertura estratégica à globalização

Em vez de rejeitar a globalização, podemos adotar abordagens seletivas que complementem as influências exteriores, sem substituir a cultura nacional.

Um exemplo interessante de intercâmbio cultural é o crescente sucesso do K-pop (Korean Pop Music) no Brasil, que impacta diretamente a maneira como consumimos música. Isso demonstra como culturas podem coexistir e influenciar-se mutuamente, sem que uma anule a outra.

O fácil acesso à internet torna o consumo consciente essencial. Podemos apreciar a música coreana e, simultaneamente, apoiar artistas brasileiros em plataformas digitais, equilibrando as influências externas com a valorização da cultura local.

Além disso, a troca cultural pode ser fortalecida ao apresentar a música brasileira a amigos estrangeiros, promovendo um intercâmbio genuíno e enriquecedor que preserva e valoriza nossas raízes.

É crucial manter o equilíbrio entre tradição e modernidade. O controle dos discursos e narrativas políticas afeta drasticamente um país, definindo o que é aceitável, valorizado e legitimado em nossa sociedade.

Um exemplo histórico é o da Alemanha Nazista, onde Adolf Hitler utilizou artifícios de propaganda massiva para disseminar racismo, perseguir minorias e justificar genocídios, alterando a percepção dos alemães e criando uma falsa ideia de patriotismo.

A mídia desempenha um papel fundamental como meio de comunicação, instigando as pessoas a tomarem partido de uma narrativa. Assim, heróis e vilões são criados. As narrativas políticas influenciam a maneira como percebemos uma reportagem. Se uma matéria tem viés tendencioso e apresenta uma comunidade de forma negativa, podemos acabar com uma perspectiva fragmentada, levando à marginalização de um povo em detrimento de outro.

A cobertura midiática de protestos, como a Mobilização Estudantil no Brasil em 2016, ilustra isso. Nessa manifestação, os estudantes pediam mais investimentos e melhores condições na educação.

A narrativa da mídia frequentemente retratava tais movimentos como atos de baderna e destruição do patrimônio público, enquanto uma análise mais aprofundada permite-nos reinterpretar os acontecimentos, considerando as causas e impactos sociais. Ao recontextualizar o cenário, apresentando-os sob uma nova perspectiva, podemos ouvir os testemunhos das pessoas afetadas, proporcionando uma compreensão mais completa do contexto e das motivações que impulsionam tais mobilizações.

Stuart Hall, teórico e sociólogo britânico-jamaicano, afirma que a linguagem desempenha um papel fundamental na construção das identidades culturais. Segundo ele, a linguagem não apenas reflete a realidade, mas também a constitui, permitindo que indivíduos e grupos atribuam significado a si mesmos e ao seu lugar no mundo.

Um trecho importante de Hall sobre isso encontra-se em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, em que ele afirma:

A linguagem é o meio privilegiado através do qual damos sentido às coisas. A linguagem opera como uma ‘representação’ no sentido de que dá sentido às coisas a partir da forma como nós as representamos nos sistemas de significação – não apenas na língua falada e escrita, mas também nas imagens visuais, nos gestos, nos comportamentos, e em todas as formas de interação social e cultural.

O trecho refere-se à ideia de que a linguagem é múltipla e carregada de signos, ou seja, significado e significante. O signo linguístico, um conceito introduzido pelo linguista Ferdinand de Saussure, é composto por dois elementos:

  • Significante: O som (imagem acústica) ou o conjunto de letras que formam a palavra. Exemplo: "mesa".

  • Significado: O conceito associado ao significante, é a imagem mental de uma “mesa” – um objeto funcional plano, com pernas, utilizado para apoiar objetos, como refeições ou para trabalhar.

Na língua inglesa, o signo linguístico é apresentado de forma diferente. O significante seria table, mas o significado permanece o mesmo.

Essa combinação demonstra que os signos linguísticos podem ter inúmeros significados, sons, imagens e formas de expressões, confirmando que a linguagem é um sistema complexo de representação, e também é subjetiva, uma vez que os aspectos socioculturais influenciam diretamente a forma como os signos são interpretados e usados.

Por fim, não podemos esquecer que a língua é viva, uma convenção social fundamental na construção das identidades culturais. Desde cedo, somos moldados por fragmentos de linguagem e experiências, cada um deles contribuindo para a complexidade única de quem somos. Esses fragmentos, adquiridos ao longo da vida, refletem não apenas nossa história pessoal, mas também o ambiente em que estamos inseridos.

Assim, a linguagem revela-se como um elo essencial que conecta indivíduos e culturas, moldando nosso senso de pertencimento e nossa interação com o mundo. Ao preservarmos e valorizarmos nossas línguas e tradições, construímos pontes entre passado, presente e futuro, garantindo que as múltiplas vozes da humanidade continuem a ressoar.

Que, ao longo do processo de descoberta identitária, possamos reconhecer o poder transformador da linguagem, contribuindo para um mundo onde a diversidade cultural seja celebrada e respeitada.