Uma das razões pelas quais temos problemas nesta vida é porque insistimos em esquecer coisas que deveríamos lembrar e porque, deliberadamente, nos lembramos de coisas que deveríamos esquecer”.

(Arthur Graham)

Vivemos numa época em que o café sem princípio ocupa o centro do universo. Não tanto pela chávena escaldada ou pela espuma morna do galão, mas pelo ritual que se repete ad nauseam: a mesquinhez disfarçada de exigência, o desagrado meticuloso com o supérfluo. “Está demasiado quente,” “Demasiado frio,” “Era um café cheio, não uma banheira a transbordar.” E eu, na fila, tento abstrair-me, mas reparo em tudo.

Talvez seja a idade. Agora que estou a envelhecer, gasto o tempo a observar o que antes me passava despercebido. Nas reuniões de empresa, por exemplo, perco-me em pormenores irrelevantes — a forma como as rugas se amontoam no rosto de um colega, como se disputassem espaço, ou o desalinho das sobrancelhas de outro, mais marcantes que qualquer opinião que ele pudesse emitir. Nessas ocasiões, dou-me por vencido sem defesa na inércia dolorosa que antecede a rendição.

Considero a memória fundamental para a construção do futuro, quanto mais não seja para não repetir estilos de narrativa.

Sempre me achei um espírito perturbado em busca de uma felicidade difícil de alcançar, a procurar um lugar de pertença ou talvez escrever uma bizarria literária como instrumento para desvendar a realidade onde gravitariam personagens, com mais ou menos vigor e por isso comecei a escrever sobre um vizinho chato em quem tropecei diversas vezes.

Para além do ambiente decrépito que contrastava com a imagem idealizada que sempre tive dos bancos — gabinetes austeros, tapetes sumptuosos, quadros imponentes, uma disciplina de silêncio que quase roçava o sagrado —, era obrigado a suportar, ainda, os remoques incessantes do meu vizinho de baixo, um homem que parecia nutrir um prazer infantil na provocação, embora o disfarçasse sob uma fachada de falsa preocupação.

"Lá no seu banco fazem aqueles créditos que andam aí a anunciar?”, perguntava ele, com um sorriso malandro, já antecipando a resposta negativa. Sabia perfeitamente que não, mas fazia questão de perguntar como se estivesse a desafiar-me a justificar algo que escapava totalmente à minha esfera de controlo. “Não fazem? Que estranho, todos os grandes bancos já estão a comercializar esse produto. Talvez se se informasse melhor, não?"

A minha náusea começava aí. Uma leve sensação de enjoo que crescia, acompanhada de uma dor surda no estômago, enquanto tentava manter uma expressão neutra. Ele sabia que cada alfinetada deixava marcas. E eu sabia que ele sabia. O sorriso dele — aquele ligeiro erguer de lábios que parecia congelado entre o escárnio e a condescendência — denunciava o prazer que tirava daquilo.

Por vezes, imaginava-o numa situação menos favorecida. Sentado à minha frente, mas já sem a sua pompa. Braços caídos, a língua ligeiramente de fora, um olhar vidrado e vazio. Na testa, um pequeno buraco, perfeitamente redondo, feito com o estilete de ferro que ele usava para abrir cartas, o sangue escorreria pelo nariz e mancharia a camisa impecavelmente branca que ele vestia sempre que queria impressionar. Não era um desejo homicida, era uma breve fantasia terapêutica, para suportar o peso da convivência.

Mas ele não se limitava a atacar o meu trabalho. Quando descobriu que eu escrevia — e que, até então, nenhuma editora tinha aceite os meus manuscritos — encontrou uma nova arma. “Já pensou em desistir? Talvez… os seus parágrafos não tenham pernas para andar”, e dizia-o com uma naturalidade desarmante, como quem oferece um conselho genuíno, apenas traído pelo brilho nos olhos. Havia prazer, claro. Um prazer sádico em ver-me hesitar, em fazer-me duvidar de mim mesmo.

A verdade é que ele era um idiota. Sempre fora. As suas histórias sobre a infância em África eram prova suficiente. Falava, com ar sonhador, de como os pais tratavam “bem” os empregados. “Os pretos, coitados, até comiam restos de frango ao domingo. Melhor que mandioca, não acha?” Cada palavra era um murro na alma, mas eu ficava quieto. A covardia tinha um peso que me fazia evitar o confronto.

Naturalmente, considerei transformá-lo em personagem de folhetim de vão de escada, um vilão mesquinho, que morreria no fim, de uma forma especialmente humilhante, talvez engasgado com o próprio ego. Mas desisti, para além dele não merecer espaço nas minhas histórias foi a sua mulher que morreu entre duas frases, truque expedito, uma vez que já me faltavam ideias e vocabulário e o narrador às vezes safa a história com um golpe de asa que só a omnisciência consegue resolver. Havia pessoas mais interessantes para explorar, como o Júlio, um antigo colega de trabalho.

Ah, o Júlio. Nunca esquecerei a tarde em que entrou no escritório, visivelmente perturbado e confessou que na noite anterior depois de um jogo do Benfica, decidiu celebrar com a mulher, mas “o bicho não acordou”. Mandou vir comprimidos da Índia e passou semanas a descrever os efeitos com um entusiasmo perturbador. A mulher, no entanto, recusava-se a passar noites em claro. “É de mais”, dizia ela. Júlio, ofendido, envolveu a cunhada no drama, gerando um espetáculo que merecia um capítulo próprio.

Mas a vida tem um sentido de humor peculiar. No jantar de Natal do condomínio, lá estava o vizinho, no centro da sala, a discursar. “E agora vou escrever um livro”, anunciou, com aquele sorriso triunfante. “As minhas memórias. Já tenho uma editora interessada.”

Fiquei paralisado. Enquanto ele falava, ergueu o copo para um brinde. Sorriu, bebeu, e engasgou-se, uma tosse discreta que parecia um capricho inofensivo ao início, mas um espetáculo de desespero com o evoluir da falta de ar no fim. Caiu para trás, a cadeira tombou com ele. O silêncio foi absoluto.

A ambulância chegou depressa, mas o médico foi claro: um engasgo fatal. Um remate irónico na vida de um chato que sucumbira com um copo de vinho. Quase de imediato, enquanto levavam o corpo pensei: Isto sim, vai dar um bom final para o livro.