O dia 07 de outubro de 2023 marcou diversas pessoas mundo afora. Para muitos Israelenses, foi o dia que quebrou suas famílias, em que perderam entes queridos, em que viram suas casas destruídas, em que tiveram que empacotar suas vidas e procurar refúgio, em que jovens vivendo uma vida normal tiveram que assumir o uniforme e partir para o fronte. Para muitos Palestinos, foi o início de uma guerra brutal, e de uma sofrência contínua e, ao certo, desesperadora. Para pessoas no Ocidente, foi um alerta da capacidade de crueldade ainda presente no mundo. Já para os Judeus, como disse o comentarista político Konstantin Kisin, 07 de outubro foi o dia em que a grande ilusão morreu.

Kisin, um judeu Russo-Britanico, se refere a ilusão que tavez toda geração de judeus deve aprender em algum momento de suas vidas. A ilusão de que nós, judeus liberais, progressistas, geralmente de esquerda, fazemos parte do mesmo grupo que nossos colegas liberais. Não é o caso.

Apesar do atual governo israelense ser de direita, e apesar do que muitos queiram acreditar -ou do que a mídia propaga- muitos judeus (tanto em Israel quanto mundo afora) não se encaixam nessa linha conservadora. Por exemplo: dos 1,2 milhões de Judeus que moram em Nova York (segunda maior população Judaica do mundo, depois de Israel), 45% se identificam como liberais, 36% como moderados e somente 19% como conservadores, de acordo com um estudo feito por Brandeis University em 2020. A dificuldade (ou teimosia) de conseguir separar o governo israelense do povo judeu no geral que vemos atualmente, além de vir de um lugar de ódio e preconceito, não reflete a realidade.

Foi nesse mundo em que cresci: uma família Judia Ashkenazi, secular e liberal, em que religião foi ensinada como um atributo cultural e uma parte da nossa origem e história, não como uma característica isoladora e exclusiva, mas uma parte importante da nossa identidade, impossível de ser negada ou quebrada. Sempre interpretei essa herança, e a habilidade dos judeus de se lembrar da sua história, como algo que, por definição, guia minha visão política e moral ao longo da vida. Com isso, sempre me associei às ideias liberais, que visam aceitação, igualdade, e, acima de tudo, tolerância.

Cresci ouvindo histórias dos meus familiares, que na Europa do Leste sentiram na pele o efeito da intolerância, do ódio, e do racismo. Ficava pasma. Se eu mesma tivesse nascido alguns anos antes, teria sido submetida a esses horrores. Ainda bem, pensava, que minha família conseguiu fugir, e que nasci em uma época e lugar muito mais tolerantes. Aqui, cresci numa bolha muito confortável, de pessoas que pensavam como eu, que jamais permitiriam qualquer tipo de descriminação, que viam homofobia ou racismo como uma doença alheia que precisa ser combatida. Participei com orgulho de manifestações a favor dos direitos das mulheres e de marchas pró-LBGT. Afinal, para mim sempre foi claro que todos merecem respeito e dignidade; marchar por isso parecia simples. A ilusão é que marchariam por mim, também.

Ah! Como era boa a ignorância de acreditar em que estávamos “todos no mesmo barco”, que o grito de um era o grito de todos, que a dor do meu povo machucava da mesma forma que a dos outros. Essa ignorância se foi, e agora, me vejo em um mundo novo, muito mais solitário, mas muito mais realista.

Me lembro de ler a notícia que George Floyd havia sido assassinado em 2020, e de sentir meu coração apertado vendo um dos vídeos mais desumanos que já tive o desprazer de assistir. Inacreditável ver um homem sendo brutalizado dessa forma. Pensei na dor e no medo que a comunidade negra americana deveria estar sentido, e que infelizmente sentem com frequência demais. Pensei nas histórias da minha avó e como elas me assustavam; entendi que os negros estariam se sentido assim, ativamente. Apesar de todos os exageros que resultaram dos protestos, e das controvérsias voltadas ao movimento BLM (Black Lives Matter), algo é claro: a morte de George Floyd comoveu o mundo - e com razão. Foram meses de protestos, de discursos, de posicionamentos políticos, de empatia e de luta por justiça. Trouxe a tona discussões sobre o abuso de força por parte da polícia americana, discriminação social, e racismo sistemico.

Em 07 de outubro de 2023, 1.200 civis em Israel foram massacrados, meninas foram estupradas, famílias inteiras foram queimadas vivas, e pessoas foram torturadas antes de serem abatidas. Foi o pior pogrom1 desde o Holocausto. Dentre as 240 pessoas que foram sequestradas, haviam crianças, um bebê de 9 meses (na época) chamado Kfir Bibas, e uma mulher grávida de 9 meses, cujo nome não foi publicado, que foi forçada a dar à luz em cativeiro. Um menino chamado Hersh Goldberg teve o braço dilacerado por uma granada antes de ser levado para túneis em Gaza. A família segue sem saber se está vivo. Uma menina chamada Shani Louk foi jogada numa carroceria, já morta e com o corpo claramente quebrado, e foi levada pelas ruas de Gaza ao som de apoio e festejo dos civis. Uma menina de 19 anos, Naama Levy, foi vista pela última vez com as calças sangrentas, sendo puxada pelos cabelos. As histórias são inúmeras, uma mais horripilante do que a outra.

Tudo isso foi gravado e publicado online, mas o massacre não causou nem um terço do sentimento e da raiva que o assassinato de George Floyd causou. Muito pelo contrário: no próprio dia 07, antes de qualquer retaliação do governo Israelense, haviam pessoas nas ruas, rindo e comemorando. Onde está o mundo? Onde estão as feministas, que juraram aliança a todas as mulheres? Estupro é aceitável quando a vítima é judia? Ignoraram as calças sangrentas da Naama? Onde estão todas as pessoas com quem eu marchei? Saem as ruas pelos direitos dos homossexuais, mas não se comovem com o assassinato e maltrato de judeus? Onde estão os liberais, os progressistas, os que não suportam discriminação? O que teria acontecido se tivessem assassinado 1.200 negros ou 1.200 gays?

Historicamente, inclusive, a comunidade judaica e a comunidade negra várias vezes conseguiram estabelecer apoio mútuo, por entender nossas histórias e suas semelhanças. Isso foi evidente durante a luta dos negros americanos pelos direitos civis. Judeus proeminentes como o Rabino Avraham Joshua Heschel e Jack Greenberg marcharam ao lado de Martin Luther King Jr. durante os anos 60; Andrew Goodman e Michael Schwerner eram meninos judeus jovens, que junto com Congresso por Equidade Racial, foram ao sul dos Estados Unidos ajudar jovens negros a se registrarem para votar, e foram assassinados por membros do Ku Klux Klan; antes disso, em 1910, judeus como Julius Rosenthal, Lillian Wald, Rabbi Emil G. Hirsch, Stephen Wise, e Henry Malkewitz formaram a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Avanço de Pessoas de Cor)), uma organização importante que luta por direitos iguais nos Estados Unidos. E agora, onde estão os negros? Esqueceram de nós, ou essa união era somente parte da ilusão?

Ou mesmo durante o COVID, quando muitos asiáticos estavam sendo discriminados, vi muitos membros da comunidade judaica liberal se afiliando aos movimentos e os protestos contra isso. Celebridades enchiam seus feeds do instagram com posts seríssimos em relação ao assédio completamente insano e injustificável que muitos asiáticos estavam sofrendo no Ocidente. De fato, foi um absurdo, e um ato de discriminação. “Fora com o ódio aos asiáticos!” Gritavam. Gritamos. E agora, que Noa Argamani, uma menina de 21 anos chino-israelense está sequestrada há 3 meses, onde está esse apoio? O ódio contra asiáticos se justifica quando a vítima é judia?

Eu mesma estudei em Brandeis, aqui citada, uma universidade em Boston extremamente liberal e majoritariamente judaica (estabelecida por membros da comunidade). Lá, pude frequentar vários encontros do grupo Jewish and Black Unity (união judaica e negra), onde discutíamos semelhanças entre nossas comunidades, formas de criar vínculos e de combater discrimação. Lembrava de forma muito positiva esses encontros, mas ao ver quão poucos membros negros da tal “união” se manifestam em soliedariedade aos judeus ou contra o antissemitismo brutal que aumenta cada vez mais no mundo, entendi que isso também não passava de uma das camadas da ilusão. Paul Kessler, um judeu de 69 que foi assassinado em uma manifestação anti-israel na California, sequer causou desconforto para a grande maioria.

Para mim, existem dois mundos, duas realidades: pré e pós ilusão. No mundo prévio, acreditava em uma união entre minorias, e na capacidade de nuance de pessoas minimamente sensatas. Essa nuance seria o suficiente para se opor a um governo sem tentar justificar estupro e sequestro, seria o suficiente para ter empatia por dois povos ao mesmo tempo, sem tentar menosprezar qualquer um dos dois, e seria o suficiente para que pedir o genocídio dos judeus nunca fosse dependente de um contexto. Nesse mundo, eu acreditava que os protestos eram a favor da paz, e que “igualdade” englobava todos. Acreditava que as pessoas se importassem com a verdade e a justiça, e acreditava em “lugar de fala”. Nesse mundo, discriminação era ruim independentemente de quem estivesse sendo discriminado, e meus vizinhos jamais me entragariam a uma ideologia criminal. Era tão simples!

Hoje, no mundo real, eu já aprendi minha lição. Foi uma lição que meus pais tiveram que aprender, e meus avós, e meus bisavós, também. Agora foi minha vez: no mundo real, em que a ilusão já morreu, nós fazemos parte de um grupo diferente; um grupo que é chamado de extremamente poderoso, mas não tem o direito de se defender quando insultado ou agredido, que compõe 0.2% da população mundial mas é chamado de opressor quando convém, um grupo do qual a história e a identidade podem ser reescritas e o significado redesenhado pelos outros, sem o mínimo de vergonha. Um grupo que é feito de argila, e moldado ao que a sociedade define no momento que precisa de um bode escapatório. A morte das nossas crianças não importa tanto assim, o abuso das nossas meninas é dado como mentira e o sequestro dos nossos homens é justificado.

Começo 2024 mais sábia, entendendo um pouco melhor meu lugar no mundo. Sigo com meus ideais e princípios, porém mais cautelosa e - admito - mais cética. Já não sou ingênua em acreditar que pertenço a turma dos liberais progressistas, já que eles não sabem o que são ou no que acreditam. Me encontro agora sem turma, para além da tribo. Já não acredito que o mundo progrediu tanto assim quanto imaginava; levo as histórias da minha avó e as entendo sob outra luz, e já não acredito na grande ilusão, que me acompanhou até agora em um bolha cheia de mentiras e hiposcrisias, que claramente estava destinada a estourar.

Notas

1 Ataques coordenados contra judeus.