Após a saída do estudo sobre o consumo de raspadinhas em Portugal, houve uma grande reação por parte de toda a gente sobre qual será de benefício permitir que estes tipos de fraudes continuem a existir em Portugal. Medidas precisam-se sem dúvida nenhuma, mas mais importante para mim é questionar a atuação da “empresa” que patrocina a venda das ditas raspadinhas, a Santa Casa da Misericórdia.

Falando primeiro de alguns dados que este estudo nos indica, vemos que 100 mil pessoas em Portugal jogam estes jogos de forma habitual como também 30 mil pessoas estão patologicamente atraídas por estas fraudes. Quem nunca viu alguém a comprar 4 e 5 cinco raspadinhas seguidas? Só para depois não ganhar absolutamente nada? Os dados revelados por este estudo são tudo menos surpreendentes. Chocantes? Alguns dados sim, mas não surpreendentes. Os 4 milhões de euros por dia em raspadinhas são claramente chocantes, em pensar que tanto dinheiro que podia ser canalizado de melhor forma, num esquema em que os únicos beneficiários são quem o promove.

O que, para mim, mais sobressalta nisto tudo é a condição social de quem aposta nestes esquemas. Seja ao nível da condição económica, académica ou até do consumo de álcool vemos que quem recebe menos, quem tem menos estudos e quem mais consome álcool está mais inclinado em gastar o seu rendimento neste tipo de marosca. Estes dados também não são propriamente surpreendentes, toda a gente já se deparou com pessoas com menor condição social a gastar do pouco que têm para lhes sair a sorte grande, o problema disto tudo é que, pelas 3 pessoas que conseguiram algum rendimento engraçado com isto, outras 1000 perderam o seu dinheiro. Isto tudo me leva a uma grande indignação, que se resume a isto, isto está absolutamente incorreto. É um jogo doente, viciado e que no final, a Santa Casa ganha sempre.

Segundo a definição da Wikipedia (não tenho vergonha nenhuma), vemos que o intuito das Misericórdias se rege sobre 14 regras que são “ensinar os simples, dar bons conselhos, castigar os que erram, consolar os tristes, perdoar as ofensas, sofrer com paciência, orar pelos vivos e pelos mortos” como também são “visitar os enfermos e os presos, remir os cativos, vestir os nus, dar de comer aos famintos e de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e enterrar os mortos”, como a isto podiam acrescentar algo do género “instigar a raspar, pedir para gastar, tentar enganar” e este tipo de coisas.

Os investimentos feitos pela Santa Casa (apenas, porque de Misericórdia parece-me ter pouco) também me parecem um pouco estranhos, sendo que de certa forma desvirtuam o intuito inicial da instituição. Foi noticiado há não muito tempo que, foram gastos 20 milhões de euros (a tentar enganar pessoas fora de Portugal) e que até agora não existem receitas. A Santa Casa está para a lotaria, como os Da Vinci estão para a música. Já foram ao Brasil, Peru e Moçambique, estão a tentar conquistar os pobres deste mundo.

Posto isto, podemos analisar que o financiamento vem de heranças, doações, mas sobretudo dos lucros na exploração destes jogos. Existem aspetos desta instituição que são de facto admiráveis, mas esta exploração lucrativa sobre os mais pobres põe-me a questionar as suas intenções. Por um lado, tratam dos mais pobres, por outro ladro deixam as pessoas mais pobres. A única regra da lotaria é que a casa ganha, e neste caso continua a ser verdade.

Parece-me urgente uma reconfiguração do que significa esta instituição que teve (e tem) um papel fundamental na ajuda aos mais necessitados. Esta exploração do lucro não só é obviamente errada como também é deliberada, tornando esta história mais cinzenta. Não estamos a falar somente duma casa de apostas, mas acima de tudo duma instituição que se regeu pelo bem, e que a certa altura optou pelo lucro fácil. Existe o perigo de se criar um jogo ilegal com a mesma intenção, mas pelo menos não será a Santa Casa da Misericórdia a fazê-lo.