Ponto de partida
Sintoma um: o saber é secundarizado
A obsessão resultadista, no contexto escolar, secundariza a importância do saber. Põe a tónica nos meios, nos equipamentos, na burocracia que defende a ‘estrutura’, na cedência ao gosto em nome da captação e da atratividade afetiva do ambiente… O diagnóstico não tem pretensão de exaustividade… O risco de saber, leia-se ‘decorar’ temporariamente, quando não decalcar com recurso a uma qualquer inovação tecnológica, para salvaguardar um resultado numérico e esquecer logo depois, é substancial e crescente. E isto verte-se em indicador, na aferição do sucesso do ‘sistema’. Ainda que este ‘devolva’ à sociedade cidadãos com fragilidades na escrita, deficitários na capacidade de argumentação, medíocres na cultura geral... A saber pouco e sobre poucas coisas. Por isso, presas permeáveis aos messianismos vários, que se propagandeiam como solução fácil no empreendedorismo, na política, nas relações sociais e afetivas, na autoajuda…
Sintoma dois: não temos sede
O ‘excesso’ (aparente e superficial, pelo menos) emerge numa sociedade ocidentalizada como a portuguesa depois de décadas marcadas pela carência e proporcionado por pessoas que tiveram a carência como denominador comum do seu crescimento. O desejo lógico e positivo de romper rapidamente com essa míngua, oferecendo abundância àqueles que trouxemos ao mundo, suscita a necessidade de trabalhar desenfreadamente para manter os níveis de consumo e oferecer aos mais jovens o que não se teve.
Este ciclo do ter gera inconciliação com a agenda do estar e com a preocupação com o ser. E mede muitos pela competição dos acrescentos que têm condições para agregar ao que são. Além disso, faz crescer em muitos a convicção que ‘têm tudo’, logo sem necessidade de ter sede de nada. Nem de saber, algo aparentemente dispensável nesta lógica que injeta o ‘ter coisas’ como objetivo de vida pragmático. Deriva também daí o facto da Escola se defrontar com alunos saciados, com curiosidade adormecida, porque não treinada, porque experimentada como desnecessária numa cultura que parece tudo desvelar e para tudo ter a chave.
Sintoma três: não treinamos o gosto
A marca utilitarista do uso das coisas com validade limitada, e de acordo com a lógica de substituição pelo modelo seguinte, atrofia o cultivo do gosto, dada a sua efemeridade. O gosto exige tempo, fruição, contemplação, apropriação… É da ordem do cultivo, não se traduz em resultados imediatos, estrutura na intangibilidade do interior, para desabrochar quando a oportunidade surge e, tantas vezes, quando não se espera.
Não exercitar o gosto, não expor os alunos à cultura, para não ter de lidar com a sua reação entediante ou antecipando o seu ‘não gosto’, é retirar a argamassa que une e harmoniza os conteúdos que os mesmos possam apreender. Desenraizar os programas escolares do chão da cultura, da história e da sociedade constitui o óbito do que seriam os seus objetivos últimos e consistentes. Constrói-se um ‘castelo de cartas’ que carece de uma rápida fotografia para que conste como ‘evidência’ para ‘memória futura’, antes que um qualquer vento de contrariedade o sopre e o desmorone.
Algumas consequências
A hiperafetividade afigura-se como um conceito que pretende traduzir um excesso de relação humano-afetiva, que substitui com riscos de anulação a relação pedagógica de ‘encaminhamento’ para a autonomia. Acarreta o perigo da infantilização, impercetível debaixo da ‘capa’ do bom ambiente e da popularidade pessoal daquele/a cuja função primeira é conduzir uma relação de ensino-aprendizagem. O afeto não se exclui, mas não é o objeto primeiro deste processo. Teme-se que esta hiperprotecção redunde na proposta de uma mundividência onde o mundo emerge como ‘almofadado’, retirando o insucesso, a derrota e o sofrimento da equação.
Tal posicionamento oculta a necessidade da resiliência como exercício antecipatório da inevitabilidade dos revezes que constituem qualquer vida histórica normal. Corre-se o risco de viver a Escola como ‘Matrix’ artificial, bolha alienante, que devolve ao mundo impreparados sem sede de aprender.
A hipersensibilidade constitui aqui aquilo que, não raro, se experimenta como paradoxo no espaço amplo do que chamamos escola. Resulta, talvez, em dose substancial, da questão anterior, mas manifesta-se em sujeitos que assumem como ‘norma de vida’ a crítica a toda a sua circunstância, com mais ou menos fundamento, mas sem estrutura para acolher algo semelhante que a si seja dirigido. Como se vivessem imunes a tudo o que de mal vislumbram ao seu redor e uma eventual mudança tenha de ocorrer sempre no ‘sistema’ e nunca em si. Frequentemente confundem respeito pela opinião, que reclamam dos demais, com concordância destas em relação ao que eles pensam.
É flagrante que a sociedade do ruído, sem espaço para o silêncio e incomodada com este, amplificada por um digital onde se vive ‘coscuvilhadamente’ as vidas de outros e onde se está mais ‘em personagem’ e menos ‘como se é’, não deixa espaço para a autocrítica e para as perguntas onde quem pergunta é, ao mesmo tempo, o objeto da questão.
O hiperpatriarcado é experimentado debaixo do rótulo da liberdade, da tolerância e do respeito. Tem como tradução, por exemplo, a legitimação e o convívio saudável com casais homoafetivos femininos e o não espaço para que os homoafetivos masculinos se afirmem como são. E, ainda, um conjunto de expressões culturais de sabor machista, de objetificação da mulher, de legitimação sob o rótulo de normalidade de comportamentos de supremacia masculina. A violência no namoro é um fenómeno crescente, transversal a classes sociais, que parecemos teimar em não afrontar, diante do pudor respeitoso por aquilo que denominamos de pessoal e íntimo. Estaremos cá, para gerir algumas das consequências, com as quais inevitavelmente teremos de lidar.
A hiperdoutrinação decorre da operacionalização de modelos pedagógicos ‘by the book’, numa circular mesmidade sem criatividade, sem leitura dos sinais dos tempos, sem a ousadia de pensar e fazer diferente. Sem darmos conta, faz escola um pensamento único, vertemos nos alunos posições pessoais sem contraditório, não damos a pensar o diferente, que reclama estudo, preparação, desconforto... Daí ao entediamento e ao desinteresse, os passos são breves e pequenos. ‘Cumprir calendário’ demite-nos de suscitar curiosidade, de colocar a pensar, de conduzir pela dúvida, a pergunta, a inquietação. Alunos sossegados poupam trabalho e geram melhores e mais fáceis indicadores de resultados. Mas talvez sejam, a longo prazo, os agentes motivadores da desmotivação e da infelicidade dos docentes, bem como do insucesso de um projeto de Escola.
O hiperativismo alimenta o mundo digital em que vivemos e onde a novidade vale muito (apenas, talvez) enquanto tal. Tem na raiz muito do que ficou dito e como objetivo o entretenimento, que alivie do tédio do tempo escolar convencional. Verte-se em ‘excursionismo’ ou em ‘fazer coisas por fazer’, sem que fique outro rasto que não o da sensibilização eventual para uma qualquer causa ou aspeto. Estes perduram na memória enquanto não são ‘substituídos’ pela atividade seguinte, mas com mais dificuldade geram compromisso e hábitos dos quais os alunos se apropriam de modo consistente. Pode ainda ter a ver com os tais indicadores e com a necessidade de ‘mostrar’ um projeto que mobilize mais pela simpatia da forma, que pela consistência e qualidade do conteúdo e que confunda agradabilidade com medianidade.
Estranhamente, ou não, muito do que aqui fica expresso dá-se a ver, em contexto escolar amplo, encaixilhado por uma ideia de ‘modernidade’ de feição tecnológica, mas epidérmica e de moda, porque protagonizada por agentes marcados por uma cultura tradicional e de manutenção do instituído.
Três porquês da reflexão ou três saídas
A esperança é uma palavra paradoxal. Não ilude a realidade, mas não se resigna a ela. Nela convivem luzes e sombras. Umas vezes predomina uma tonalidade, outras, outra. Importa, por isso, que o sombrio seja verosímil, mas marcado (pelo menos) pelo compromisso com um estado de coisas diferente.
O emaranhar da vida escolar em casuísticas circunstanciais ou ocasionais, focadas nomeadamente nas estruturas e nos meios, desgasta e desfoca. Viver como se tivesse de ser assim é uma realidade à qual não temos de estar condenados. Importa manifestar isso nos lugares apropriados, mas com sede de diferente, com gosto de mais e de outra coisa, com saber fundamentado sobre outras possibilidades.
O ‘bombeirismo’ escolar, controlador dos alunos, policiador, receoso de todos os perigos, vivido na ilusão de que se antecipa, previne e anula todo o ‘mal’ possível é ingenuidade esquizofrénica. Além de infantilizar alunos, dá um sinal evidente de desconfiança em relação a eles, à sua liberdade, às suas possibilidades de bem. Portanto, valerá a pena o risco de inverter este paradigma e de arriscar confiar, retirando daí todos os louros e amparando todos os insucessos, como parece ser caraterística de todos os processos educativos.
A ‘burocratização’ das agendas resulta num conforto que exala o sabor sossegante de dever cumprido. Mas instala na mornidão que não leva diferença às vidas. Nesse sentido, exercitar o trabalho de união e reunião de grupos mais pequenos, que trabalhem questões estruturantes, diferenciadoras, para com isso marcarem as agendas dos plenários pode ser uma aposta de futuro.
O paradoxo é só uma realidade tensional e desafiante. O esforço por catalogar eticamente como bom ou mau essa realidade que vislumbramos, impede o acolhimento das suas potencialidades e a transformação daquilo que, nesse estado de coisas, possa ser desumanizante. E esse devia ser o compromisso fundante e fundamental.