A sensação de sermos estranhos em nosso próprio lugar é comum a muitos de nós. Talvez um sentimento universal. Estamos sempre à procura de um lugar para chamar de nosso, pertencimento a um local ou um grupo é uma busca instintiva até. Por isso talvez narrativas onde outro ser humano conte sobre sua própria busca nos pareçam tão interessantes. A gente mora numa cidade por anos, interagimos com milhares de pessoas em nossas vidas, mas muitas vezes não conhecemos nem nossos vizinhos. O sentimento de este lugar ser nosso e também não ser, é contraditório, mas real.

Com uma ideia algo parecida a isso, anos atrás dois caras fizeram uma jornada um tanto inusitada, caminharam de uma ponta a outra de uma das maiores cidades do mundo. E morando numa metrópole como essa não há como não se sentir um estranho assim que se vira a esquina.

A seguir, como segunda parte da matéria, entrevisto um dos caras que fez esta jornada; Reinaldo Moraes, é escritor, roteirista e cronista, autor, entre outros, dos livros Tanto Faz, A Órbita dos Caracóis e Estrangeiros em Casa, do qual falamos aqui, o mesmo saiu pela National Geographic em 2004.

A travessia despretensiosa à primeira vista, no fundo se mostrou um misto de estudo sociológico, jornalismo gonzo e exercício de sensibilização. Ele entrou nessa aventura quase por acaso e nos fala um pouco sobre esse "passeio".

Se Iggy Pop cantou as belezas e ruínas da cidade como um passageiro, foi andando que Reinaldo e Roberto contaram sua cidade desconhecida. Hoje, onde desaprendemos a andar, a olhar e principalmente a ver, ao vivermos cada vez mais distantes e indiferentes essa é uma história essencialmente atual.

Afinal, caminhante não há caminho, o caminho se faz ao andar. Ao fazer a jornada é que ela se mostra, se constrói. Foi mais ou menos isso que aconteceu.

Entrevista com Reinaldo Moraes

Reinaldo, primeiramente é um prazer falar com você. Como leitores, é sempre uma graça poder conhecer o processo de criação de autores, suas experiências, inspirações e aspirações.

No começo do milênio, 2003, o mundo enfim não tinha acabado, a internet era uma criança e o futuro prometia muitas coisas, mas também havia um sentimento de estarmos perdidos no ar. A cidade de São Paulo estava para fazer 450 anos. É nesse cenário que você e o Roberto Linsker embarcaram numa aventura arcaica, analógica como se diz hoje.

Por que vocês atravessaram a cidade à moda antiga, a pé?

A ideia foi do Linsker, há exatos 20 anos: fazer um trekking fotovivencial de 7 dias, percorrendo a cidade, em linha relativamente reta, do extremo sul (Marsilac) a norte (Túnel da Mata fria). Em pleno Dia de Finados, com frio e chuva, pegamos um táxi nos Jardins, onde ambos morávamos, nos abalamos pra Marsilac, aonde cheguei com a coluna avariada por conta das lombadas assassinas que o taxista faturava em sequência na estrada de Parelheiros. Sentado no banco de trás, virei uma pipoca saltando na panela. A partir daí foram 7 dias pedestres de contato pessoal com o universo paralelo das periferias e dos antigos bairros populares, do sul ao norte, lugares totalmente desconhecidos para nós. Nosso modus operandi foi o mais simples e eficaz possível: o Roberto Linsker traçava o itinerário e fazia fotos de pessoas e lugares. A mim coube entrevistar essas pessoas nas ruas e descrever os lugares e circunstâncias que vivenciamos, além de escrever as legendas das fotos. O que foi bem divertido.

Essa experiência, real, de ver as coisas como são, teve impactos nas suas obras posteriores? Ou mesmo na sua forma de se ver no mundo?

Esse trabalho, para mim, foi principalmente um tour sociológico pela cidade em que nasci e moro há 70 anos. No entanto, não usei em meus escritos literários posteriores esse material garimpado na chamada realidade. A redação do 'Estrangeiros em casa' de alguma forma me bastou como desaguadouro dessa experiência. Penso que, apesar da proximidade física com as pessoas e suas realidades, ainda assim nosso olhar era inescapavelmente externo, alheio às realidades que tangenciávamos no caminho. O título do livro dá bem a noção dessa externalidade.

Dos locais onde passou e das pessoas que conheceu, teve alguma passagem que o tocou mais?

A nossa visita a uma favela imensa no bairro do Grajaú, zona sul, foi um desses momentos impactantes. A conversa com jovens locais, fora da escola e sem nenhuma opção de trabalho, foi chocante. O mesmo posso dizer da visita à aldeia guarani Tenondê-Porã, em Parelheiros, também zona sul. A aldeia é também uma grande favela, com casebres miseráveis e total falta de perspectivas profissionais e culturais para aquelas pessoas.

Você teve oportunidade de passar depois por algum desses lugares? Houve alguma nostalgia?

Nunca mais voltei a nenhum desses lugares. Talvez estejam irreconhecíveis hoje em dia, temo que não por terem se desenvolvido nem nada parecido.

Andar a pé tem um tempo diferente, dá a chance de a pessoa ver as coisas, conversar, sentir o ambiente mais profundamente, tanto que resultou no livro. No entanto, a sociedade do consumo atual, vê quem anda como um ultrapassado, o sem classe e até um estorvo para a circulação na cidade. O que você pensa sobre isso? E como era a estrutura para caminhar naquela época?

Sou um andarilho nato, mas os primeiros dias da travessia foram especialmente duros para mim, por conta da coluna avariada. Além disso, os bairros periféricos não têm calçadas decentes - isso quando encontramos calçadas -, banheiros utilizáveis ou segurança mínima. Em alguns momentos achamos que podia 'dar ruim' pra gente. Mas, na real, tudo transcorreu na santa paz.

Algumas pessoas e grupos buscam hoje revalorizar o andar, seja por sua indiscutível utilidade prática seja pela liberdade que este ato nos dá. Porém, há baixa adesão a este movimento, por conta de o carro além de ser um objeto claramente útil, mas também por ser um objeto de fetiche. Na sua opinião há futuro para se caminhar? Ou estaremos todos fadados a se enclausurar nestas cápsulas de metal e conhecer o mundo pelo vidro do carro?

Chutando alto, eu diria que 90% da população de qualquer cidade brasileira não tem carro - essas "cápsulas de metal" de que você fala - e está fadada a caminhar longas distâncias todos os dias para trabalhar, além de se valer de um transporte público ainda insuficiente e ineficiente. Sem falar, mais uma vez e sempre, na questão da segurança. Sou muito pessimista a esse respeito, diante das opções políticas catastróficas que se apresentam a cada ciclo eleitoral. E acho que por muito tempo ainda o veículo individual continuará a desfrutar desse anacrônico e insalubre status de "objeto de fetiche".

O que está trabalhando atualmente? Alguma novidade pela frente?

Estou acabando um romance de umas 300 páginas, todo ele ambientado num táxi e em dois apartamentos. Nada a ver com mobilidade urbana.

Para finalizar Reinaldo, a pergunta que não quer calar...Faria uma aventura dessas hoje em dia?

Não tenho mais gás para tanto, infelizmente. Estou mais para uma 'Viagem ao redor do meu quarto', pra citar o famoso romance do Xavier de Maistre, autor francês do século 19.