A primeira estrofe de um conhecido soneto do poeta português Luís de Camões, diz:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Pode parecer estranho fazer referência a um texto do século XVI em um artigo que pretende tratar de leitura e escrita na era digital. A estranheza, no entanto, desaparece quando se verifica que o texto fala de algo que atemporal, ou seja, que tudo muda. Essa ideia de mudança contínua remonta ao filósofo grego Heráclito, que afirmava que tudo flui. As práticas de leitura e escrita, evidentemente, não fogem à regra.

A história mostra que o novo nem sempre é novidade e que o tradicional nem sempre é velho. Novas tecnologias são sempre sedutoras. As pessoas se sentem narcotizadas por elas e isso pode levá-las a perder a dimensão histórica dos acontecimentos, mas não é preciso tapar os ouvidos com cera para não se deixar entorpecer por elas; pelo contrário, é preciso estar antenado com as novas tecnologias para compreendê-las a fim de fazer o melhor uso delas.

Toda nova tecnologia traz um impacto imediato. Assim foi com surgimento da televisão (achavam que ela acabaria com o rádio). No Fedro, uma obra de Platão, há uma discussão sobre o fato de que uma nova tecnologia (a escrita) levaria os homens à perda da memória. As novas tecnologias seduzem e algumas se perpetuam, a escrita, por exemplo. Outras envelhecem rapidamente, como o disquete e o dvd.

Contrapondo às novas tecnologias, tratarei de tecnologias mais antigas que permitiram que os textos chegassem até nós. Essas tecnologias também sofreram mudanças (não tão rápidas como as digitais) e determinaram a forma com o passamos a se relacionar com os textos. Lembrando que as mudanças nas práticas de leitura são muito mais vagarosas que as mudanças tecnológicas. Hoje, lemos em computadores, mas as práticas de leitura ainda são as do livro impresso. Em muitos casos, o que mudou foi o suporte: da folha de papel para a tela de um computador.

A primeira revolução tecnológica que possibilitou a circulação e a preservação dos textos foi a escrita. Antes dela, os textos circulavam oralmente. Com a escrita, os textos passaram a ser “gravados” em algum suporte, o que contribuiu para preservação deles. Esses suportes variaram e ainda variam com o tempo.

Primeiro foram inscrições nas pedras. Isso era um problema porque as inscrições não eram transportáveis. Não havia portabilidade. Tinha de se ir aonde o texto estava; o texto não vinha ao leitor. Depois passaram a gravar os textos em tabuletas de argila. Chegava-se à era da portabilidade, os textos viajavam com as pessoas, como ocorre hoje.

Posteriormente, os textos passaram a ser reproduzidos em rolos de pergaminho. Lia-se como se faz hoje nas telas de computador, rolando o texto de cima para baixo. Isso, porém, tinha um defeito: num rolo, ao contrário de um HD ou de uma nuvem, cabe pouco texto e, para se ler, tinha-se de segurar o rolo com as duas mãos. Não se podia ler e escrever ao mesmo tempo.

Depois, os textos passaram a ser gravados em folhas de pergaminho ou de papel dobradas. Com isso, surgem os códex, um ancestral do livro atual. Uma grande vantagem do códex em relação ao rolo é que se liberavam as mãos. Podia se ler e, ao mesmo tempo, fazer anotações. Com os códex podiam ser usados os dois lados do pergaminho, o que não ocorria com o rolo. O códex permitiu ainda que se dividisse a obra em capítulos.

Os códex se sofisticaram e se transformaram nos livros como os conhecemos hoje. A tecnologia que permitiu a passagem do códex, um volume enorme, para o livro moderno foi dobrar a folha mais vezes: em quatro, depois em oito, depois em dezesseis, formando os cadernos que recebem uma capa.

Atualmente, os livros de papel passaram a se apresentar no formato digital e podem ser lidos em telas de computador e armazenados em nuvem, resolvendo o problema de espaço.

As mudanças de suporte implicaram mudanças na maneira de ler. Na passagem do rolo para o códex, alterou-se a posição em que o leitor lia. Para ler o rolo, ficava-se em pé; com o códex podia-se ler sentado. A leitura no rolo era feita em voz alta; o códex propiciou a leitura silenciosa; a quantidade de texto que cabia num rolo era pequena. No códex, cabia muito mais texto. Além dos suportes, mudaram também os materiais usados para a escrita: cinzel, lápis, giz, pena de ganso, caneta tinteiro, caneta esferográfica, máquina de escrever, teclado de computador.

Retomo a algo que disse logo no começo deste artigo. Devemos estar atento ao presente, mas sem perder de vista que o presente logo será passado. Aí é que entra a literatura. Por meio dela, temos acesso ao perene, ao universal, a valores humanos –demasiadamente humanos, numa expressão tomada por empréstimo a Nietzsche.

Se a mudança dos suportes alterou o modo de leitura, as mudanças de instrumentos de escrita também alteraram as formas de escrever. Basta ver como hoje escrevemos no WhatsApp: textos curtos, com palavras abreviadas e acompanhados de figurinhas para exprimir os mais diversos sentimentos. Novas tecnologias permitiram que os textos fossem acompanhados de animações, sons, efeitos especiais, como se pode observar nas apresentações feitas em PowerPoint. Nas aulas, alunos substituem as tradicionais anotações por escrito, por fotos da lousa ou da tela da apresentação. No caso de aulas e apresentações via remota, a opção para registrar algo é um print de tela.

Uma coisa é certa: as novas tecnologias não decretaram, como muitos previam, o fim das práticas de leitura e escrita, pelo contrário, nunca se escreveu e nunca se leu tanto como nos dias atuais. O tempo todo estamos diante de uma tela de computador, lendo mensagens, notícias, postagens, enviando e respondendo mensagens, publicando em redes sociais, fazendo comentários em um blog etc.

Hoje, é comum que se faça a leitura silenciosa, a exceção são os casos em que lemos para um auditório. Essa prática de leitura, no entanto, é relativamente nova, se pensarmos em termos da história da leitura, uns cinco mil anos. Se hoje a leitura de textos manuscritos e impressos pode ser feita sem maiores dificuldades é porque entre as palavras há espaços em branco e sinais de pontuação que orientam a leitura. Houve época em que, na escrita, as palavras eram emendadas umas às outras. Os sinais de pontuação só começaram a ser utilizados no século IV, uma invenção relativamente recente, se levarmos em conta a história da escrita. Sua função, inicialmente, era diferente da de hoje. O ponto, por exemplo, era usado para separar uma palavra da outra, pois não havia o espaço em branco entre as palavras, o que surge apenas no século VII. Separar as palavras por espaços em branco e usar sinais de pontuação pode ser considerada uma revolução tecnológica no sentido facilitar muito a vida dos leitores, que passaram a despender menos esforço interpretativo durante a leitura.

Hoje, substituímos os recados escritos em papel por mensagens no WhatsApp; as cartas, por e-mails; a aula só falada, por apresentações multimídia. Essa revolução tecnológica pode assustar em princípio porque ela é muito rápida. Não faz muito tempo, usavam-se transparências em retroprojetores para ilustrar uma exposição oral; informações eram guardadas em disquetes e CDs cuja capacidade de armazenamento era ridícula para os padrões atuais. O WhatsApp, lançado há apenas 14 anos, já possui mais 2 bilhões de usuários mensais no mundo. No Brasil, esse número está perto dos 150 milhões. Há alguns anos, o acesso à internet era feito exclusivamente por computadores de mesa; hoje as pessoas se conectam à rede por meio de smartphones, aparelhos que substituem os celulares com inúmeras vantagens, já que são telefones inteligentes, dotados de sistema operacional (IOS, Android), que faz deles verdadeiros computadores portáteis.

Apesar de todos os avanços tecnológicos, ainda é por meio de textos que nos comunicamos, portanto é preciso não se deixar iludir achando que, com as novas tecnologias, não precisamos mais nos preocupar com a forma como redigimos. As mudanças se fazem sentir mais nos suportes do que nos textos.

O gênero do texto não deve ser confundido com o suporte, que é base física (papel, madeira, tecido, plástico, tela de computador etc.) na qual se registram e se conservam os textos. Quanto à interatividade, os suportes digitais permitiram que a interação se intensificasse. Antes, a pessoa recebia uma carta, tinha de dispor de papel e caneta para respondê-la, colocá-la em um envelope, levá-la ao correio e pagar para remetê-la ao destinatário, que receberia a resposta só depois de alguns dias. Hoje, recebemos uma mensagem eletrônica e podemos respondê-la imediatamente onde estivermos sem custo algum (exceto os decorrentes de estar ligado à internet). Os gêneros digitais possibilitaram ainda uma interação muito próxima à da conversação oral face a face.

É importante destacar que as convenções relativas ao gênero se mantêm nos textos digitais, ou seja, o meio digital não é uma terra de ninguém, onde não há leis e se pode fazer o que quiser. O discurso, entendido como a língua em uso, sofre as coerções do gênero. Isso significa que, se o gênero obriga o uso da variedade culta da língua, o texto deve ser escrito nessa variedade. Uma petição judicial, enviada eletronicamente, é exatamente igual, no que se refere à linguagem, a uma petição entregue pessoalmente impressa em folhas de papel.

Por fim, chamo a atenção para o fato de que documentos digitais passaram a ter, em inúmeros casos, validade jurídica. Um e-mail e uma mensagem via WhatsApp podem servir como prova numa ação judicial, um recurso a uma autoridade pode ser feito via eletrônica etc.