Naquele dia, a minha vida foi bafejada pela sorte. Não se tratando de um ganho material, vivi uma experiência única, que jamais se apagará do meu coração e que me transformou para sempre. Enquanto isso, o Tempo e o Espaço, cúmplices e indiferentes a tudo e a todos, continuaram forjando a trama em que nos movemos. O Mundo como eu o conheci, está a desaparecer. Depois da Profecia que apontava o fim do Calendário Maia para o ano de 2012, com um corte qualquer na relação Espaço-Tempo, tudo mudou.

Imperceptíveis à grande maioria, mudanças estruturais subtis mas visíveis foram surgindo em catadupa, como águas revoltas de um rio que anseia por chegar ao mar. E passados vinte e um anos dessa data limite, pergunto - Será que ainda estamos vivos? Nós, que sempre ansiámos por construir o Paraíso na Terra, o espelho dos Céus na Natureza, assistimos diariamente ao desmoronar desse Sonho que pouco a pouco se foi transformando num Inferno quase irreversível. Quase tudo o que nos rodeia virou tóxico, da poluição ambiental às ideias. Deixou de haver limites de decência nos comentários nas Redes Sociais, onde mais do que o Ego é o Narcisismo que dita os vómitos da Má Educação. Entretanto, a Natureza continuará o seu processo evolutivo, em que plantas e animais, cada vez mais adaptados ao que está por vir, subirão de escalão, podendo os animais vir a falar, segundo a previsão Maia. E tudo isso parece um retorno às lendas antigas que se referiam ao Passado Remoto como “No tempo em que os animais falavam!”

Parece que um ciclo gigante se foi fechando e a Humanidade, presa num enclave, entrou no desespero do “Salve-se quem Puder”. A nossa Preguiça Interior não nos deixou evoluir mais do que a Tecnologia e a Ciência fizeram. Elas, que sempre evoluíram lado a lado com a filosofia, aliaram-se ao Materialismo Primário que tem como únicos fitos mais poder, riqueza e destruição.

E no meio de todo este imbróglio, ainda me sinto jovem. Sem grande tempo para parar, deixei de lado a rotina diária de me olhar ao espelho, o que me impediu de ver a mudança. Como aquele cachorrinho que criámos desde bebé e que, sem sabermos como nem porquê, passados meses se tornou adulto, envelheci. E pior, não me apercebendo que o Tempo gera a Rotina e ela é cega, deixei-me levar pela agitação do Mundo e agora, cansado, tive que parar! Finalmente, descubro-me ao espelho e questiono-me – O que são estas madeixas brancas? E estas rugas, aqui e ali, que me carregam a expressão e fazem recordar que só o Tempo não envelhece, o que é a antítese da imagem que dele foi criada, de um velho de longos cabelos e barbas brancas. Vejo, nitidamente, algumas linhas de expressão que não são minhas, e que foram passando de geração em geração, até chegarem aos meus avós escondidos nos meus olhos. Através de mim, vivem a mais recente experiência da nossa família e que podem ir seguindo fora do mundo da matéria. Assim, a Morte não existe! Aprende-se a morrer, ao aceitar o desaparecimento dos outros. Paradoxalmente, é uma prática que nos foi ensinada pela Vida. Nascer é o golpe de rins de todos os que se recusaram a viver envoltos em líquido amniótico. A Paixão foi o segundo golpe de rins, que nos arrancou da Rotina para uma outra realidade paralela, em que os Sentidos sempre estiveram muito apurados. Na escola, não nos ensinaram nem o que é o Amor, nem o que é a Morte. Só a proliferação de guerras, com estatísticas do número de vítimas, criadas por este mundo essencialmente governados por Homens que, se tivessem ovários e soubessem o que é gerar vida, não teriam a obsessão de a destruir. Felizmente, não há Morte para os que partem. Vão de olhos fechados, envoltos no sossego apaziguador do Sono, entrando no sonho de outros universos. Quem fica e os vê num caixão, é quem os nomeia de mortos. A Morte é uma roupa que dificilmente se descola do corpo – Pois, ela que fique com o seu prémio, Vísceras e Ossos, o fertilizante das novas vidas sempre a acontecer e nos deixe em Paz! – oiço dizer aqui e ali.

Aceito a Morte, tranquilamente. Ainda antes de saber o que ela era, já não tinha medo do escuro. Em pequeno, andava de noite pela casa sem luzes acesas e sem esbarrar em nada, muito silenciosamente. Devo ter sido gato numa outra vida. A mãe cantava-nos a cantiga dos "Três gatinhos" e eu assumia a letra como verdadeira. Sempre gostei de pouca luz ou nenhuma e sempre preferi velas a lâmpadas eléctricas. E adorava Sombras Chinesas! Passava horas a criar histórias com pessoas e animais que, depois de alguns ensaios, eram apresentados à família em espectáculos a seguir ao jantar. Um fim de dia chuvoso de Inverno, estava eu nestas criações quando a luz faltou no bairro. É bem diferente, não querer usar a luz mas saber que está ali, do que não haver mesmo. Quando falta a electricidade , fica-se próximo da realidade humana dos séculos em que a não havia e que foram quase todos. Poder sentir-me ligado aos meus antepassados, incluindo os homens das cavernas, era excitante demais. Estar conectado a todos eles, acalentava-me a alma. Não tinha sido em vão que todos eles tinham vivido. Eu era o fruto último de todos os que tinham gerado. Agradecia-lhes por isso. E começava a pensar o que seria se faltasse também o Gás e a Água, tudo ao mesmo tempo. Onde se iria buscar água? Como aquecê-la para tomar banho? Não haveria internet, Redes Sociais, nem telefone de fio ou sem fio, sem Electricidade, era irrelevante! De repente, os pais entravam no meu quarto com uma vela acesa ou uma pilha de campismo. A luz gerada, dava perfeitamente para continuar com as histórias de Sombras Chinesas. Às vezes, deixavam-se ficar a ver o desenrolar da minha nova narrativa, até a luz voltar. Outras, regressavam à cozinha, preparar o jantar. E que bem sabia comer à luz da vela, sem ter a televisão ligada! Só nós, a Família, e o Silêncio! Parecia que se ouvia mais e que a comida tinha outro sabor. Não há nada a fazer, quando a família está unida. Que nunca falte essa luz de gargalhadas, nos momentos especiais que ficarão gravados para sempre na mente das crianças, como acontecimentos únicos de Vida.

E vamos passeando na Terra, supondo que todos somos imortais, que sempre seremos os mesmos, iguais a nós próprios. No entanto, não é bem assim. Porque convivemos connosco diariamente, não nos apercebemos das mudanças que em nós se operam, porque tudo está em constante transformação. Aquilo que pensávamos há tempos atrás, pode não fazer sentido no Agora. Um livro que adorámos ler na adolescência, se acaso o relermos, pode ser um balde de água fria, por estarmos noutro ponto de focagem. O mesmo acontecendo com um filme, música, estilo de roupa, estilo de vida, conhecidos e amigos, etc. Estando em constante mutação, mesmo sem darmos conta, somos permeáveis ao nosso entorno. Daí se ficarmos algumas semanas longe de um bebé, de um gatinho, cachorrinho ou planta, notamos logo as diferenças no regresso. Isto é um exemplo da rapidez que a vida leva a florescer. O passar dos anos ensina-nos que a nossa vida é um pequeno segmento de recta da “Vida Toda” e que esta Dimensão compreende o Tempo e o Espaço. Viver bem o nosso tempo de vida é o mesmo que colocar uns bons ténis e andar, andar muito e sem dores, permitindo-nos sentir o que nos rodeia. É que a dor nos pés quando sobe pelas pernas até à coluna, chega à cabeça. Aí, vai interferir com as ideias, roendo-as por dentro. Quando era miúdo, chamava-lhe "O Caruncho", quee era mais destrutivo do que uma boa dor de cabeça. Às vezes, quando os sapatos não eram bons, os pés sofriam. Proporcionar-lhes esse mal-estar, era verdadeiramente miserável, visto serem eles a base de sustentação do nosso corpo. Com o passar dos anos, fui digerindo o que aprendia da Vida, dando um especial apreço por tudo o que fosse natural, simples e harmonioso. Cuidado! Ser simples não é o mesmo que ser básico ou primário.

Há um ou outro marido de amigas minhas a quem trato por Cro-Magnon, num francês irrepreensível, e que me sorriem por lhes falar nessa língua lindíssima. Mas voltemos atrás. Conseguir chegar ao despojamento da simplicidade, é uma Arte. E a Natureza é Mestra nisso. Assim, vou-lhe dando mais valor, bem como às Artes, à Amizade e ao Silêncio - Ontem foi noite de Superlua. A segunda Lua de Agosto sempre me impressionou pelo seu tamanho e alvura. Nos últimos catorze anos, tenho-a visto nascer no Egeu, vermelha como um jovem sol a quem se mandou um piropo. A Lua nasce silenciosa no mar, com pressa de chegar ao meio do céu, tornando-se branca, intensa e transbordante de Luz. Quem anda, como eu, de turista na vida, olhá-la é uma honra e uma real limpeza de Alma. A sua beleza pura manifesta-se no meu coração e comove-me, como acontecia quando em pequenito e ia ao Teatro com a família. Pensar que os meus olhos, ao vê-la no céu, contemplam a mesma beleza que todos os meus antepassados, em tempos diferentes, foi uma revelação! Como é possível, num segundo, todos ficarmos ligados por um mesmo fio de sensação? Comovo-me. Não estamos sós, nunca estivemos! A energia da memória, criada na mente pela digestão dos Sentido, está permanentemente girando ao nosso redor, neste carrossel incrível do Agora. Talvez pará-lo, seja o segredo da Meditação. Procurar o Deus interior, a parte luminosa de nós, que se esconde sempre que entramos na frequência dos desejos materiais, talvez preferisse dialogar com o brilho da Lua, do Sol e de todas as estrelas que brilham no céu?

Acordei, há pouco, todo torcido num dos individuais da Casa Nova. Eram três da manhã e a segunda Lua-Cheia de Agosto tinha-se instalado no sofá à minha frente. Olhava-me tranquila. Sempre achei que o Fernando Pessoa tinha aquele mesmo ar, silenciosamente aluado, criativo e sabedor. Que mais se poderia esperar da Lua e de um Poeta? E de repente, também ele ali estava, sentado ao lado dela, com o seu fato escuro puído, um papillon pregado no colarinho da camisa muito alva e uns sapatos, juntos, bem engraxados. Tirou o chapéu que pôs no colo e que de repente era um pequeno gato preto que acariciou distraído. Abracei-os com o olhar e saí para a varanda, contemplar o Oceano de prata. Estranhamente, sentia-me mais alto, como se tivesse crescido durante o sono. Fernando surgiu por detrás de mim e pegou-me no braço. Sem nada dizer, levou-me no seu sonho de Ode Marítima para um cais sem ondas, onde um paquete branco nos aguardava aquela noite, para nos levar a correr mundo. E o imenso cais de pedra, encheu-se de toda a gente que conhecemos. A Saudade tinha vindo despedir-se, talvez da Lua, porque o Fernando e eu ficámos serenamente, a olhar todo aquele mar de gente. Com um vago aceno, entrámos no paquete, que pesava menos do que todas as memórias das nossas vidas e partimos. A proa do navio, aos poucos, foi-se esquecendo da doca e chapinhou na espuma branca e revolta, enchendo-se de lágrimas de gaivotas. Sempre indecisas entre partir e ficar, voavam sobre nós, ficando aos poucos para trás, envoltas num círculo de bruma, àquela hora tardia. Fernando levou o gato à cabeça, que virou chapéu de aba e lentamente acendeu um cigarro. Ouvi-o dizer por dentro - Fumo para não pensar. Não permitir que as ideias sintam, é o bálsamo de cada cigarro, como fiadas de contas de vidro no colar da memória que vou cruzando entre o Sonho e a Realidade. Tudo nos trespassa!

Somos feitos de vento do ar do tempo. Não creio no mar da Esperança, nem na vastidão do Desespero. Tudo é só o toque de lábios da consciência de um qualquer Deus, carimbando as nossas frontes, de quando em vez. O resto é só Desejo Vão, Ilusão e a Agonia da luta pela Sobrevivência, onde cada um tenta encaixar. Nisto, Fernando olhou-me nos olhos e despertou, todo vestido sobre a sua cama. No pequeno quarto, o gato preto tinha subido para o parapeito da janela aberta e ficado a olhar a cidade inteira por despertar.