“Não vês? Minh’alma é como a pena branca
Que o vento amigo da poeira arranca
E vai com ela assim, de ramo em ramo,
Para um ninho gentil de gaturamo...
Leva-me, ó coração, como esta pena,
De dor em dor, até a paz serena.”

(Auta de Souza)

Quem é de luz é sublime e terna. Foi assim que nasceu Auta Henriqueta de Souza, na cidade de Macaíba no Rio Grande do Norte, em 12 de setembro de 1876, filha de Elói Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina Rodrigues, uma alma de muita luz. Talvez ela não tivesse consciência de sua dimensão, Auta de Souza, segundo o folclorista Câmara Cascudo, foi “a maior poetisa mística do Brasil”. Para quem não entende ainda, tem gente que vem ao mundo revelar a sua luz em poesia. Não é uma tarefa fácil, pois escrever com a alma é para poucos. Para tanto, a dor fortalece a alma, a dor é um portal que ajuda na comunicação com o divino.

A sublime Auta de Souza transformou a dor na mais pura ternura fotografada em suas poesias. Ao travar uma conversa com Deus, a sublime Auta, transforma dor em poesia. Tem gente que vem ao mundo perfumar a vida. Porque para fazer poesia é preciso um bocado de tristeza misturada com sonhos. Auta de Souza sentiu na alma a tristeza de perder a mãe, o pai e o seu querido irmão. Singela como uma borboleta, temperou suas poesias pela tristeza e esperança numa altiva conversa com Deus. A tuberculose, doença que rondou sua família, foi o motivo da morte de seus pais. A poetisa ficou órfã aos três anos de idade com a morte de sua mãe e no ano seguinte perdeu o seu pai. Foi criada pela avó materna, a Dona Dindinha, que mesmo analfabeta tinha um sentido de futuro e proporcionou aos netos uma educação com professores particulares. Sua avó morava no Recife, numa linda chácara. Dona Silvina Maria da Conceição de Paula Rodrigues (Dindinha) foi responsável pela inspiração poética de sua neta. Auta de Souza foi uma menina sonhadora, tinha uma alma leve como uma pena, quando completou onze anos foi estudar no colégio das freiras vicentinas, o São Vicente de Paula no Recife, Pernambuco. Auta foi apaixonada por literatura, música e desenho. Teve como influência as obras de Victor Hugo, Lamartine, Chateabriand e Fénelon, além das literaturas religiosas. Tinha a sabedoria em transformar oração em poesia. Era um doce em pessoa. Talvez, Auta de Souza, soubesse a senha para falar com Deus. Mas, na sua vida, Auta vivencia um período de muita tristeza com a morte trágica de seu irmão mais novo, Irineu Leão Rodrigues de Souza, que por descuido ou fatalidade, foi acometido pela explosão do candeeiro que segurava ao descer da escada. Há de se considerar que Auta, mais uma vez, de tanta tristeza, não reclamou, apenas sentiu e fez poesia. Mesmo tão sensível que era Auta, tinha um coração do tamanho do céu.

E, com quatorze anos, a sublime e terna, Auta de Souza foi diagnosticada com a triste notícia de que estava com tuberculose. Com isso, teve que sair do colégio, mas não foi empecilho para continuar com seus estudos e com suas poesias. Na verdade, ela era autodidata, tinha uma perspicaz formação intelectual, por isso gostava de escrever sobre as dimensões entre o céu e a terra.

Mesmo assim, continuou participando dos grupos de estudos religiosos. Foi catequista da União Pia das Filhas de Maria. Fez versos religiosos e com sua doçura mostrava as particularidades do sentido da vida em poesia. Para o poeta Manoel de Barros, “poesia é uma voz de fazer nascimentos”. Na verdade, é um canto para enxergar o mundo e os seus símbolos. Por isso, Auta de Souza, produzia com dedicação e sabedoria, os desígnios da vida em poesia. Digamos que ela sabia o seu caminho. Mesmo doente frequentava o Clube do Biscoito Fino, que era um tipo de associação de amigos, onde recitavam poemas de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Lourival Açucena, Bajão, Segundo Wanderley, Junqueira Freira entre outros. Nesse tempo se apaixona pelo promotor público da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, João Leopoldo da Silva Loureiro, mas é obrigada a se separar devido a sua doença, onde seus irmãos se preocupam com o seu estado de saúde.

Durante esse tempo, Auta conquista seu espaço na imprensa literária do Rio Grande do Norte. Foi colaboradora da revista Oásis, dos jornais A Tribuna e A República, A Gazetinha de Recife e do Jornal Oito de Setembro. Seus poemas são publicados no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro e assina com pseudônimo de Ida Salúcio e Hilário das Neves. Ela é a única mulher a enfrentar o círculo literário de exclusividade masculina passando a assumir sua identidade feminina. O único livro de Auta foi intitulado - Horto, um livro intenso de poemas sentido na alma pela sua religiosidade, seus amores, suas dores, sua espiritualidade. O livro foi prefaciado pelo grande poeta das estrelas, Olavo Bilac. Antes de ser lançado tinha como título – Dálias. Auta foi mesmo uma flor. Sofrimento e amor em sua vida foram derramados em poesias. Para tanto, Auta foi divinamente um ser de luz que apesar de suas dores não deixou de acreditar em Deus, porque longe da mágoa soube ser uma santa da sublime ternura. Com isso, sua poesia passa a ser conhecida não só no nordeste, mas também fora dele. Sua vida foi breve, nem por isso deixou de ser intensa. Auta de Souza partiu no dia sete de fevereiro de 1901, deixando um legado sobre a vida e seus símbolos. Na sua lápide está escrito:

“Longe da mágoa, enfim no céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais.”

Ao cair da noite (Auta de Souza)

Não sei que paz imensa
Envolve a Natureza,
Nessa hora de tristeza,
De dor e de pesar.
Minha alma, rindo, pensa
Que a sombra é um grande véu
Que a Virgem traz do Céu
Num raio de luar.

Eu junto as mãos, serena,
A murmurar contrita,
A saudação bendita
Do Anjo do Senhor;
Enquanto a lua plena
No azul, formosa e casta,
Um longo manto arrasta
De lúrido esplendor.
Minhas saudades todas
Se vão mudando em astros…
A mágoa vai de rastros
Morrer na escuridão…
As amarguras doidas
Fogem como um lamento
Longe do Pensamento,
Longe do Coração.

E a noite desce, desce
Como um sorriso doce,
Que em sonhos desfolhou-se
Na voz cheia de amor,
Da mãe que ensina a Prece
Ao filho pequenino,
De olhar meigo e divino
E lábio aberto em flor.

Ah! como a Noite encanta!
Parece um Santuário,
Com o lindo lampadário
De estrelas que ela tem!
Recorda-me a luz santa,
Imaculada e pura,
Da grande noite escura
Do olhar de minha mãe!
Ó noite embalsamada
De castas ambrósias…
No mar das harmonias
Meu ser deixa boiar.
Afasta, ó noite amada,
A dúvida e o receio,
Embala-me no seio
E deixa-me sonhar!