Políticos e líderes religiosos frequentemente apontam que a base da sociedade ocidental seria a família e que ao nos afastarmos do seu papel tradicional a cultura se enfraqueceria. Entretanto, por mais senso comum e óbvia que essa alegação aparenta, ela é, também, controversa. Alguns autores argumentam o oposto, a marca da cultura ocidental seria famílias frágeis. Todos os povos humanos dão grande valor aos laços familiares, em grande parte a união fraternal é a unidade básica da sociedade, mas a sociedade ocidental atribui peso maior ao indivíduo do que a família, a liberdade pessoal parece mais importante do que os laços de sangue, a sensibilidade moderna diz que um indivíduo não deve nada a uma família que não lhe forneceu amor. Mas essa é uma percepção moderna, durante a maior parte da história essa noção de individualismo não era relevante, as pessoas se percebiam como membros de um grupo familiar.

Povos de caçadores-coletores (que vivem em estado similar aos primeiros humanos, sem agricultura) não costumam enxergar estranhos como seres humanos, apenas como demônios perigosos, a percepção de humanidade se limita apenas aos membros do seu bando. Casamentos são uma forma de formar aliados, pois está criando laços e ampliando a família ao anexar os parentes da esposa ao seu grupo. Casar membros de grupos inimigos para formar uniões foi uma estratégia política para acabar com rivalidades até pouco tempo, os reis europeus utilizavam mesmo recurso ainda no século 20.

A própria noção de sociedade era basicamente a de uma família expandida, um povo era visto como descendendo de um herói ancestral místico que lhes deu local para viver e criou suas regras e hierarquias. Todos dentro do povo eram parentes (ou melhor acreditavam que eram parentes), famílias eram ligadas por elos mais antigos em clãs, os clãs supostamente eram agrupados em tribos que por sua vez estiveram unidas em um reino. A hierarquia também vinha da família, do mesmo modo que o patriarca era o chefe da família, havia um chefe do clã e um chefe tribal. O rei nada mais era do que o patriarca do povo, o descendente direto do filho mais velho do ancestral místico e, portanto, o chefe da família. Um ditado berbere resumia essa mentalidade:

Eu contra meus irmãos, eu e meus irmãos contra meus primos, eu meus irmãos e meus primos contra o mundo.

Essa percepção da comunidade como uma família estendida era obviamente muitas vezes artificial e gerada conforme necessidades políticas ou sociais, nos níveis mais baixos como famílias e clãs era fácil recordar quais eram seus parentes próximos, o que tornava a união natural, mas nos níveis mais altos como as tribos, as associações eram principalmente artificiais e feitas para tornar vizinhos sem relação em colegas de uma causa comum dispostos a cooperar para seu próprio bem.

No ocidente, essa origem mística está presente nos patriarcas bíblicos. Abraão recebeu de Deus o direito a terra prometida, seu filho Isaac e seu neto Jacó mantiveram a relação com seu protetor divino, quando Jacó teve filhos, eles foram os fundadores das 12 tribos de Israel. Jacó escolheu que um entre seus filhos e netos para ser o líder da família, várias gerações depois um descendente do mesmo se tornaria o rei Davi que levaria seu povo a grandeza, do mesmo modo foi profetizado que um descendente de Davi seria o messias (o rei de um novo reino divino).

A história bíblica é um exemplo de como a ancestralidade comum servia para manter a união. A narrativa de Abraão se popularizou entre os judeus no período posterior ao fim do exilio da babilônia. Na época, os exilados voltavam para seu lar ancestral e encontravam aqueles que nunca tinham deixado a terra, a rivalidade poderia ser um problema entre as duas comunidades. Entretanto, ao descrever que todos eram descendentes de Abraão, estava-se estabelecendo que todos eram uma família. Mesmo os edomitas, descendentes do neto de Abraão, Esaú; e o árabes, herdeiros do filho bastardo do patriarca; Ismael; eram uma família e tinham seu lugar dentro da sociedade.

Mas os hebreus não eram os únicos, os gregos também acreditavam que descendiam de um herói lendário: Heleno, filho de Deucalião. Segundo o mito, Zeus e Poseidon inundaram a terra num diluvio, o titã Prometeu avisou Deucalião do desastre e mandou construir uma arca. Quando apenas a família de Deucalião estava viva, os deuses cessaram as águas. Após o desastre seus filhos repovoaram o mundo, o mais velhos Heleno, teria tido três filhos: Doro, Éolo e Xuto; o último teria dado a ele dois netos: Aqueu e Ion. Os ancestrais das 4 tribos da Grécia.

Do mesmo modo os nigerianos possuíam seu herói mítico Bayajidda, um príncipe de Bagdá que fugiu para a África, chegando no continente teria realizado grandes feitos, como derrotar uma serpente gigante e se casar com princesas locais. Segundo as lendas, ele teria tido três filhos: Bawo, Biran e Karbagari, esses por sua vez teriam tido netos, que dariam origem as 14 cidade-estado do povo Hausa fundando sua civilização.

No grande esquema cósmico de manter e preservar a família, o trabalho dos vivos era zelar pelo legado dos seus ancestrais, tanto em sentido simbólico quanto espiritual. O culto aos ancestrais foi comum na maioria das sociedades, os vivos tinham que praticar rituais religiosos pelo bem-estar dos que vieram antes. Na sociedade mesopotâmica, o pós-morte era descrito como um lugar sombrio e de alimentos ruins, as oferendas que os vivos ofereciam aos mortos eram uma forma dos falecidos apreciarem os confortos do mundo material novamente. Na china da dinastia Shang, os nobres possuíam duas almas, uma que permanecia no túmulo e outra que ascendia aos céus para se juntar aos deuses. Os vivos tinham o dever de cuidar da alma que se encontrava na terra, pois a outra iria intervir para o bem dos vivos junto as divindades.

Essa obrigação pelos ancestrais muitas vezes era maior do que os deveres com os vivos. No Japão feudal uma prática comum entre os pais era o do mabiki (infanticídio), a maioria das famílias não tinha muitos filhos. Em parte, isso ocorria, pois, as famílias acreditavam que mais importante do que cuidar das crianças era fornecer doações aos templos budistas para orar pelas almas dos falecidos, para que reencarnassem no paraíso como deuses.

A cultura que demonstrava mais apreço pela família provavelmente foi a chinesa do período imperial. Isso se deve a figura do mais reverenciado filósofo da sociedade chinesa, Confúcio. O sábio viveu num período em que o povo chines estava dividido em vários pequenos feudos dos quais os nobres lutavam continuamente entre si para estabelecer superioridade. Confúcio desejava solucionar os problemas da sociedade e restaurar a moral. Ele acreditava que o caminho para felicidade era um retorno aos valores tradicionais pregados pelos antigos reis chineses mitológicos que teriam construído a civilização, Confúcio pregaria o chamado caminho do meio de honestidade e lealdade.

Para o filósofo, os deveres supremos eram com o estado e família, mais especificamente a figura dos pais, que criaram os filhos durante a infância e mereciam dedicação cega depois de velhos. O intelectual enxergava tanta importância na autoridade paterna que dizia que após a morte dos genitores, os filhos deveriam manter um período de luto de 3 anos, como forma de compensação pelos três anos do começo da infância que os pais dedicaram aos filhos.

A influência do sábio no império chines e seus estados satélites: como Coreia, Vietnam e Japão; era tão vasta que ele foi chamado de O rei não Coroado e chegou a ser visto como uma figura de origem divina, com 3 metros de altura e poderes místicos o qual teria sido pressagiado por um Unicórnio em seu nascimento.

Nos séculos após sua morte, a hegemonia do Rei não Coroado sobre a cultura chinesa se tornou completa, para assumir postos no governo era preciso estudar os clássicos confucianos. Do mesmo modo, os acadêmicos trabalhavam com afinco para instruir o povo nesses valores de lealdade e devoção. Livros de histórias para ensinar o povo, retratavam pessoas integras que sacrificaram tudo que tinham para proteger os pais. Em uma história da china medieval, um homem com a mãe doente e tendo uma criança em casa para alimentar decide dedicar seus esforços para salvar a mãe, as custas da criança, demonstrando como era rígida a afiliação paterna chinesa.

Esse dever com a família que a culturas antigas e as sociedades orientais apresentavam, ajuda a explicar a devoção mesmo entre os mais jovens de práticas que para o Ocidente parecem opressivas, como os anciões da família decidirem o casamento de seus filhos. O casamento era (e ainda é) principalmente uma forma de construir uma união entre duas famílias, e era assim um acordo coletivo, não individual.

A concepção familiar da comunidade pode ter implicações brutais. Quando uma violência era perpetrada por um membro de uma família contra alguém de outra, se formava uma rixa entre as duas. Caso a vítima viesse a falecer, provavelmente os parentes iriam demandar sangue, e ele não precisaria ser derramado do autor do crime, qualquer familiar poderia ser punido. A falha moral cometida por um membro da família era uma falha de todos, logo qualquer estaria suscetível de pagar.

Isso muitas vezes causava que famílias inteiras desaparecessem em feudos de sangue, com ambos os lados acreditando estar expiando os pecados do outro pelo passado, mesmo matando pessoas que não tiveram nenhuma influência nos crimes antigos. Crenças de que o pecado era hereditário para os descendentes pode parecer algo ilógico para a mente individualista ocidental, mas era algo frequente. Mesmo a bíblia tem passagens com essa mentalidade, a noção do pecado original que passou de Adão para toda humanidade tem esse conceito implícito.

A devoção a família foi um critério importante para ajudar a sociedade se estruturar. Alguns estudiosos veem-na como a base da comunidade, o que explica por que observar sociedade como uma família estendida. A cultura ocidental individualista tem visão mais calcada na liberdade do que na fraternidade, mas esse peso familiar continua relevante nas culturas orientais.