Là sont li grant secré escrit
Qu'on nomme le Graal et dit

(Robert de Boron)

Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?

(Fernando Pessoa)

Na primeira crónica desta sequência, folheámos algumas das manifestações do Graal. Em jeito de divertissement. E nesse mesmo registo continuaremos a nossa viagem, à volta dele, para parafrasearmos Henry James (The Turn of the Screw, 1898), embora sem o seu suspense…

Encarado de diversas formas desde que surgiu como miriabilia, o Graal tem oscilado entre ser visto como mera ficção, como metáfora indicadora de algo que transcende a sua eventual objectalidade (seja o real, seja o espiritual) ou como objecto real com uma dimensão mágica e/ou simbólica, para tentar restringir a tipologia a 3 vias, sendo certo que cada uma potencia múltiplas outras.

No último caso, como objecto real, a variação da sua natureza (cálice, pedra, livro…) é associada a narrativas ou sequências com lugares (ir)reconhecíveis na geografia, especialmente, europeia.

Bastaria lembrarmo-nos da cartográfica Europa Regina (séc. XVI), de Sebastian Münste, para assinalar a rivalidade entre a esquerda/norte e a direita/sul da figura deitada: de um lado, a Britânia com a sua Avalon, governada pela "fada" Morgane e suas irmãs, Glastonbury e os alegados túmulos de Artur e de Guinevere separados pelo Canal da Mancha da Bretanha arturiana-brocelianda (Ille-et-Vilaine, com a floresta Paimpont, e Côtes-d'Armor) por onde Merlin e Viviana viveram os seus (des)amores, onde Félix Bellamy localizou o túmulo do mago (em 1889) e onde a “Capela do Graal” (Igreja Sainte-Onenne em Tréhorenteuc) iconografa a confluência entre a tradição cristã e o mito arturiano (mesa redonda, aparição do Graal, afresco de veado branco, etc.); do outro lado da Mancha, a sul, entre a reivindicação dos Plantagenetas e a dos Francos-Merovíngios, desenha-se a zona do Languedoc assolada pela cruzada anti-cátara onde a Legenda Áurea conduziu Maria Madalena (Saintes-Maries-de-la-Mer) e onde a devoção régia conduzia os reis franceses em homenagem a essa sua reclamada antecessora (Le Chemin des Rois, a que foram S. Louis, em 1254, Philippe VI, de Valois, François I, Catherine de Médicis, Charles IX, Henri III, Louis XIV, Ana de Áustria, Mazarin, e outros, mas também os Papas Etienne VI, em 816, e João VIII, em 878).

Com Julius Evola, Eliade, Max Weber, Emile Durkheim, Georges Duby e tantos outros, o Graal é o caminho da iniciação, a busca da perfeição… os cavaleiros de outrora teriam sido uma sua figuração. Um processo com etapas: o aspirante ao Graal (Parsifal), ao empreender a demanda (busca do aperfeiçoamento espiritual), vencendo os apelos mundanos (Klingsor) e governando o corpo físico (Kundry) pode, pela ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini), elevando-o para a cabeça (Mont Salvat) e atingir desse modo a perfeição (Nirvana).

Mas observemos mais sistematicamente a cartografia do Graal, assinalando algumas rotas.

Cartografias pregantes

Os lugares da ficção:

À partida, poderíamos sinalizar os lugares que a literatura do Graal nomeia. Topónimos ficcionais (Munt Salvatsch e outros) a que muitos ensaiam correspondências na geografia real, justificando a identificação com as de personagens reais, também elas associadas pela onomástica. A concorrência entre a Inglaterra, a Flandres, o Languedoc e as Astúrias desenvolve-se com um elusivo Graal cintilando nas brumas dos seus imaginários e cultuais… A toponímia simbólica e sem correspondência directa ao real potencia diversa cartografia.

Os lugares do (culto do) objecto:

Depois, há os lugares que reivindicam ter Graais (no singular, claro). O que remete para as centenas… indiquei já alguns, hoje centrais em rotas turísticas plasmada em trajectos nacionais da sua alegada viagem de chegada de Jerusalém. São trajectos que conciliam, por isso, dois diferentes objectivos: a peregrinação e o turismo. Por ex., a Rota do Graal na Comunidade Valenciana passa por Barracas, Jérica, Segorbe, Torres-Torres, Gilet, Sagunto, El Puig, Massamagrell, Alboraya e Valência, terminando na Capela do Santo Graal da Catedral de Valência. Dentre eles, assinalei já em Espanha e em Inglaterra aqueles que mais se destacam nessa reivindicação e/ou exibição e que tentam justificá-la com uma narrativa do itinerário do Graal até lá, por lá e de lá. Das narrativas intrincadas outros falarão, mas importa sublinhar que o seu fascínio acabou por obcecar os místicos: Otto Rahn (Cruzada contra o Graal, 1934; A Corte de Lúcifer, 1937) procurou o Graal nos Pirinéus franceses e Trevor Ravenscroft (A Lança do Destino, 1972) desvendou o misticismo negro do nazismo.

Saltando outras vias, recorde-se a etimologia popular que faz de Portugal o Porto Graal (“porto do Graal”), local de recepção do vaso mítico que a lenda diz estar em Tomar, sob a Charola do Convento, ou ter sido levada por Cristóvão Colombo para o Novo Mundo, onde a busca pelo Graal ainda está ativa… uma tradição perscrutada por muitos, como p. ex., Lima de Freitas (Porto do Graal: a riqueza ocultada da tradição mítico-espiritual portuguesa, 2006), que autores como Nuno Ferreira Gonçalves (A tradição do Graal em Portugal, 2022) tentam sintetizar, matéria fascinante para os que buscam a “história oculta”, em geral.

Nos próximos textos, detectivescamente, seguiremos itinerários desde a génese da ficção… até lá!