O mundo é codificado e há no ser humano a vantagem de querer codificá-lo à sua maneira. Digamos que vivemos nas margens da ficção. Aprendemos desde cedo a seguir o caminho da “Ordem”. Mas, que “ordem” é essa que nos afasta do sentido da vida?

Acredito que a ciência deva andar par e passo com a literatura. Ambas, sinalizam o sentido da vida. Somos feitos de vivências nas diversas fases da vida. Atravessamos pelo tempo e muitas vezes nem percebemos a diferença entre distância e ausência. Há de se considerar que, como diz a escritora Clarice Lispector “tenho mais fragilidades do que qualidades”, que somos frágeis e é na fragilidade e nos atropelos das nossas escolhas, que construímos nossas qualidades. Os conflitos criados diante de uma soberania moral formam nossas expectativas para codificar o mundo. Por isso, muitas vezes queremos decifrar qualidades em vez de compreender as fragilidades humanas, que é bem mais difícil.

Isso tudo pode assustar, mas, temos nas nossas vivências o poder das nossas histórias. Graças ao desabrochar das histórias que o mundo se refaz. E, ainda bem que existe a ventura e a desventura para compor as fragilidades na história. Com isso, temos a história oral e a história escrita irrigada pela imaginação. Dizia Bachelard Assim, “somente quando a alma e o espírito estão unidos num devaneio pelo devaneio é que nos beneficiamos da união da imaginação e da memória” (Bachelard, 2009, p.99).

Então, percebemos que na era da cultura do algoritmo nos distanciamos do devaneio. O escritor Oscar Wilde dizia que “nós, não precisamos de muita coisa, apenas um do outro e de sonhos” Para tanto, o que vem causando conflitos na era digital é apenas a falta de sonhos para o desabrochar das histórias.

Não se assustem, porque tem muita moçada fabricando sonhos e escrevendo sobre várias histórias. O que estou querendo lembrar é do atropelo na fabricação desses sonhos.

Mas, qual o significado de ficção? Para Jacques Rancière, que escreve em seu livro - As margens da Ficção, “O que distingue uma obra de ficção da experiência trivial do dia a dia não é a falta da realidade, mas o acréscimo de racionalidade. Ao mesmo tempo sucessivo do cotidiano em que uma coisa simplesmente acontece após outra, a ficção organiza ações, encadeia causas e consequências de tal modo que os acontecimentos pareçam se engendrar uns aos outros e, ao final, inesperadamente, as expectativas se invertem, a ventura se transforma em desventura e a ignorância em saber.” (Rancière, 2021, p. 7)

Daí, se a história oral perpassa pela riqueza do imaginário, a escrita perpassa pela riqueza da ficção, ou seja, pelo acréscimo de racionalidade. Continua Rancière, “A racionalidade da ficção está em que as aparências – ou as expectativas, já que a mesma palavra em grego diz as duas coisas – se invertem.” (Rancière, 2021, p. 7)

Digamos que é nítido em muitos escritores essa inversão entre as expectativas e as aparências. Melhor dizendo, entre a estética e a ética. Nos tempos atuais, onde a estética ganha uma dimensão a seu favor, nada mais interessante do que a ficção ganhar visibilidade mediante a cultura do algoritmo. Desse modo, ressalta Rancière que na literatura, “A verdade se impõe como reviravolta daquilo que as aparências levaram a esperar.” (Rancière, 2021, p. 9) Então, são novos dilemas para um mundo na era digital. A escrita passa por uma nova dimensão, onde olhava-se para o passado, agora olha-se para o futuro.

Mas, será que estamos preparados para isso? Digamos que precisamos ter ao mesmo tempo o passado e o futuro e devemos entender que para escrever precisamos de vários aspectos como cotidiano, sonhos, venturas e desventuras e por aí segue. Penso que algumas escolas e a academia ainda não estão preparadas para este modelo de pensamento rápido para o futuro. Ainda estão atropeladas para esse novo mundo que faz parte do crescimento e do ciclo no desenvolvimento da humanidade.

Embora os rituais estejam se reatualizando, não podemos nos separar da natureza nem do cotidiano. Saliento, que necessitamos de saber das validades e das pretensões na fabricação de nossas histórias. Sabemos que há mudanças e assimilações nas tradições, então, devemos compreender que feição queremos dar para reformular nossas histórias.

Atento a isso, o escritor Roland Barthes afirma, "A escrita está longe de ser neutra, pelo contrário, está sobrecarregada com signos mais espetaculares da fabricação.” (Barthes, 1953, p. 62)

Notem que a escrita é recheada de invenção entre o que podemos criar envolvidos pelo cotidiano e pelos sonhos. Cabe analisar que escrever sobre o social e para sociedade não é tarefa fácil. Primeiro porque a sociedade está acostumada com a lógica aristotélica, segundo que a academia ainda não fez a ruptura do rigor de seus limites epistemológicos. Como seria então escrever esse novo social para sociedade? Edgar Morin, diz que há muita ciência engavetada.

Devemos desabrochar para que se possa dizer numa redação cientifica os sentimentos ocorridos no fluxo do social? O que seria então escrever para a sociedade? Seria privilegiar o cotidiano e os sonhos? Ou, o que os mestres e os brincantes da cultura popular gostariam de saber? Ou melhor, de que eles se interessam? Precisamos saber qual é a feição da escrita nos tempos da cultura digital e como podemos dar visibilidade a novas histórias. Para isso, devemos ponderar e procurar qual feição queremos dar para nossa história.

Primeiramente a educação literária poderia ser uma saída na diminuição de uma escrita realizada por uma soberania moral fundada em intimidação. Necessitamos de uma escrita motivada numa feição de virtudes, o que corresponde aos muitos clássicos da literatura, como Tolstói, Dostoievsky, Dante Alighieri, Machado de Assis, Sant Exupéry, Jane Austen, Victor Hugo, Graciliano Ramos, George Orwell, Gabriel García Márquez, Rainer Maria Rilke, Aloísio de Azevedo, entre ouros que não foram mencionados, mas, foram pensados.

O escritor angolano da literatura lusófona Gonçalo M. Tavares diz que a “literatura é um lugar de refazer começos.” Realmente o lugar da literatura é precioso, traz justamente o coração de nossa moral e o cérebro da nossa ética.

Então, como desabrochar novas histórias num mundo da cultura do algoritmo?

Receitas não faltam. O que devemos compreender é que os fragmentos estão em alta na era da cultura digital. Para tanto, os mestres da cultura popular, os brincantes, os artesões, os indígenas, as pessoas de matriz africana estão desabrochando novas histórias entre as suas venturas e desventuras. Porque, como dizia Joseph Beuys “Pensar é esculpir. A revolução somos nós. Todo homem é um artista.”

O que precisamos escrever é sobre as transformações do homem na sociedade. Essa é a dica. Passamos muito tempo escrevendo sob alguns constrangimentos, agora na era digital, devemos entender que a escrita deve falar de transformações.

A esse respeito o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos em seu livro intitulado - O olho e o microscópio, afirma que, “Para qualquer ciência, a verdade é o ideal último a atingir; para a lógica, ela é o tema mais próprio de reflexão sistemática. “Descobrir verdades é tarefa de todas as ciências, à lógica compete conhecer as leis do ser verdadeiro.” (Lopes dos Santos, 2008, p.27)

Por isso, devemos formar o ato de pensar baseado na educação literária para o desabrochar das histórias no mundo. Para isso acontecer, o ato de pensar deve ser construído na busca do refinamento humano. Segundo o Professor Lopes dos Santos, “diferentemente do filósofo grego Aristóteles, que empregou como modelo a linguagem ordinária, o sistema lógico fregiano (Gottlob Frege) parte da linguagem aritmética. No livro, o autor estabelece essa distinção.”

O pensamento de Frege refere-se a lógica aritmética pelo sentido e referência.

Nesse estudo, do desabrochar das histórias, é importante salientar que estamos numa era onde devemos encontrar na escrita uma saída para um mundo melhor. Sei que não estou escrevendo, ainda, para sociedade, mas, penso que o sentido da vida seja escrito. Mudar a forma de pensar, ainda é um trabalho que custará muito tempo. Enquanto isso, busquemos um novo modo de ponderar os atropelos criados na esfera do social, O social é amplo, é dinâmico. Cabe nele muitas invenções. Se a escrita é uma invenção, cabe nela muita ficção. O que podemos fazer é colocar óleo na máquina humana pela literatura, como dizia o meu professor, orientador, Welington Pereira da Universidade Federal da Paraíba - UFPB.

“Portanto toda escrita atual existe uma dupla postulação: há um movimento de uma ruptura e o de um advento, há o próprio desenho de qualquer situação revolucionária, cuja ambiguidade fundamental é o fato de a Revolução ser obrigada a extrair daquilo que quer destruir a imagem do que quer alcançar. Como a arte moderna na sua totalidade, a escrita literária contém simultaneamente a alienação da História e o sonho da História: como Necessidade, atesta o dilaceramento das linguagens, inseparável do dilaceramento das classes como Liberdade, é a consciência desse dilaceramento e o próprio esforço que pretende ultrapassá-lo. Sentindo-se constantemente culpada da sua própria solidão, ela não deixa de ser por isso uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras, precipita-se para uma linguagem sonhada cuja frescura, por uma espécie de antecipação ideal, representa a perfeição de um novo mundo adâmico onde a linguagem já não seria alienada. A multiplicação das escritas institui uma Literatura nova na medida em que está só inventa a sua linguagem para ser um projeto: a Literatura tornou-se a Utopia da linguagem.” (Barthes, 1952, p. 78, Livro: O grau zero da escrita.)

Assim, há muita confusão na ficção, e isso é o mote da existência das venturas e desventuras no desabrochar das histórias. E, pasmem, é pela azáfama da ficção que a história se refaz. Necessitamos de escritores ativistas, que narrem seus cotidianos, escritores negros, indígenas que desabrochem seus sonhos. Necessitamos da eterna sensação de sonho para dar sentido à vida, porque somos feitos de vivências que desabrocham em histórias.