Precisei sair de casa para continuar existindo distante de minha família e caminhar pelas minhas próprias pernas (...). No momento, minha necessidade é inversa. Sinto uma poderosa força que me impele para retornar ao Lar... Preciso me reencontrar novamente. Partes minhas ficaram para trás... Sinto urgência em resgatá-las!

(Reflexões de uma mulher em movimento)

O anseio pela emancipação é uma etapa importante do processo de desenvolvimento humano. Ter energia e força suficiente para desgarrar-se do ninho e da proteção dos pais a fim de alçar voo para a conquista de novos horizontes é um desafio para todo aquele que pretende ser “ele mesmo”. Em seu processo de autoafirmação, a personalidade em desenvolvimento necessita romper e desenredar-se de tudo que sente como opressivo e ameaçador ao ego e ao seu crescimento. Em outras palavras, precisamos sentir que somos “donos de nosso próprio nariz”.

O ser humano saudável em processo de desenvolvimento necessita provar para si mesmo que ele “dá conta” e que consegue superar seus próprios limites e satisfazer suas próprias necessidades. Muitas vezes, no ímpeto de construir sua trajetória com as próprias passadas, muitos dão a volta ao mundo, conhecem outras civilizações ou fincam sua âncora em outros países. Tudo isso para enfim se certificar de que: “eu posso”, “eu consigo”, “eu sou melhor hoje do que eu fui ontem”, “eu consigo caminhar pelas minhas próprias pernas” ou talvez até para estar seguro de que pode ir mais longe do que o seu antigo colega de escola (não esquecendo que estamos em uma sociedade competitiva). Já outros não precisam ir tão longe; basta apropriar-se de um “pedacinho de chão”, o qual possa demarcar como o seu território: “Aqui mando eu!”

Todas estas peripécias do ser humano em seu processo de autoafirmação são legítimas, sendo que muitas vezes passamos mais da metade de nossas vidas tentando construir um legado. Se houver reconhecimento social, isto contribui por consolidar nossos esforços e legitimar as peculiaridades da obra, mas se não houver, ainda assim, sentimos a necessidade de continuar fazendo... E fazendo do nosso jeito.

“Fazer do meu jeito” está relacionado a “deixar a minha marca impressa no mundo porque eu sou uma pessoa única...” Fazer do meu jeito significa “eu tenho a minha individualidade e quero ser respeitada(o) enquanto tal.”

Já estando a passos largos de nosso caminhar na existência, percebemos que na correria louca para sermos nós mesmo(a)s, deixamos cair alguma coisa, algo se perdeu ou ficou para trás...

É preciso então refazer o caminho de volta ao Lar, o que pode ser entendido no sentido literal ou simbólico; qualquer coisa que tenha o cheiro ou desperte as reminiscências de uma cena de aconchego, uma memória significativa para nossas emoções e que, entrando em contato com isto possamos nos sentir nutrido(a)s e fortalecido(a)s. O Lar, um espaço físico/virtual para nosso refúgio, proteção, segurança, o lugar que tem as cores do arco-íris e onde sobretudo, podemos ser nós mesmos.

Assim, na urgência de recuperar fragmentos perdidos de uma identidade ancestral, nos deixamos guiar por um imperioso clamor vindo de nossa alma: “Preciso retornar ao Lar!”

Sair em busca da mais antiga expressão de nossa natureza essencial - aquilo que sem perceber deixamos cair no chão – é, pois, a necessidade imediata que se impõe. Secretamente intuímos que esta atitude nos trará de volta a vida que se esvai e também irá ajudar a recuperar o viço da pele e o brilho dos olhos.

O ato de estar de volta ao Lar possibilita um retorno às origens, uma celebração e união com os ancestrais, um ‘re-costurar’ a própria história revisitando, integrando e dando novo sentido a partes esquecidas e até mesmo renegadas do eu. São ações estas profundamente terapêuticas, visto que auxiliam no processo de reparação, sutura e cicatrização de antigas feridas e relações quebradas, liberando-nos emocionalmente para a criação de algo novo. Isto também inclui apropriar-se de uma herança e de um legado para que possamos estar completo(a)s e inteiro(a)s para então seguir fazendo a nossa parte. Lembrando que o significado de “totalidade” para Jung (1985) é tornar sagrado ou curar; a expressão mais plena possível de todos os aspectos da personalidade, tanto em si mesmo(a) como na relação com outras pessoas e com o meio ambiente. A totalidade pode ser tanto um potencial como uma capacidade. Segundo Carl Gustav Jung, o centro de toda a psique (ou centro da personalidade total) é o si mesmo (Self). Dele emana todo o potencial energético de que dispõe a psique. O Self é o ordenador dos processos psíquicos. Integra e equilibra todos os aspectos do inconsciente, devendo proporcionar, em situações normais, unidade e estabilidade à personalidade humana.

O Si mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade. A dinâmica desse processo é o instinto, que vigia para que tudo o que pertence a uma vida individual figure ali, exatamente, com ou sem a concordância do sujeito, quer tenha consciência do que acontece, quer não.

(Jung apud Rocha Filho, 2003).

Segundo Clarissa Pinkola Estés (1994) a volta ao lar é uma viagem de retorno ao próprio Self. Especificamente no caso das mulheres:

Toda mulher afastada do lar da sua alma acaba se cansando. É então que ela procura sua pele de foca para revitalizar seu sentido de identidade e de alma, para restaurar seu conhecimento penetrante e oceânico. (...) Muitas e muitas vezes perdemos a sensação de estarmos inteiras dentro da nossa própria pele em decorrência de longos períodos de coação. Quem trabalha com grande esforço sem descanso também corre esse risco. A pele da alma desaparece quando não prestamos atenção ao que realmente estamos fazendo e, especialmente, ao custo disso para nós. (...) Perdemos a pele da alma quando ficamos muito envolvidas com o ego, quando nos tornamos por demais exigentes, perfeccionistas, quando nos martirizamos desnecessariamente ou quando nos sentimos insatisfeitas e não fazemos nada em relação a isto.

(p. 332-3).

De posse da nossa inteireza podemos então funcionar plenamente no auge de nossas capacidades e potencialidades. Este seria o “pulo do gato” quando, ao se considerar a evolução natural do ciclo vital, entrar-se-ia em uma fase de declínio das habilidades físicas e psíquicas.

Muitos perdem infelizmente esta oportunidade porque não estão abertos às sutilezas da vida ou porque não ouvem o chamado que vem de dentro.

É urgente, pois, apurar os ouvidos da alma se quisermos caminhar mais longe...

Referências

Estés, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994.
Jung, C.G. Fundamentos de psicologia analítica. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. 6.ed. Petrópolis, Editora Vozes, 1985. vol. XVIII, t.1.
Rocha Filho, João Bernardes. Física e Psicologia: as fronteiras do conhecimento científico aproximando a Física e a Psicologia Junguiana. Editora EDIPUCRS, 2003.