Como organismo, nós, seres humanos, sobrevivemos ao realizar nossas funções vitais, tanto quanto ao superar e enfrentar o que as ameaça. Esse processo contínuo é avassalador, provoca realizações e frustrações, humaniza ao permitir transcendência dos limites, ou desumaniza, animaliza ao transformá-los em determinantes comportamentais.

O processo de humanização depende fundamentalmente da existência do outro, um outro que aceita o que está diante dele, ou seja: um ser humano com possibilidades infinitas e necessidades circunstancializadas à sua sobrevivência cotidiana. Esse simples, efetivo e evidente momento - encontrar o outro e ser por ele encontrado - é crucial, definitivo para estruturação de aceitação ou de não aceitação, com suas decorrências de disponibilidade - abertura para o que acontece - ou de vazio - fechamento em função de seus referenciais de sobrevivência.

Ser aceito pelo que é, ou pelo que pode ser ou não deve ser determina processos diferentes. Filhos e filhas, por exemplo, ao serem percebidos como entrave ou como saída para as próprias limitações e cogitações são transformados em instrumentos, coisas que podem ser utilizadas para melhorar, para realização dos próprios sonhos ou, por outro lado, como coisas que urgentemente precisam ser destruídas, doadas, negadas - não se quer aquilo, é o fruto despropositado. Às vezes se é percebido como estorvo indesejado e corporificado, e então, é isso que se é. Essa configuração perceptiva, relacional, estabelece consistência, mesmo que aparentemente desagradável diante do que se imagina ser o filho, o novo ser.

Perceber o estar sozinho definitivamente constrói autonomia, mas também pode destruir as possibilidades de autonomia pelo desenrolar constante de atitudes omissas, medrosas, carentes e mendicantes, gerando a submissão, o aceitar ser coisa que merece chutes e esmolas e assim sobreviver. Frequentemente a vivência de ser rejeitado e desconsiderado pelo outro — mãe, pai, ou pelos nichos sociais nos quais não se encaixa — cria observadores que aprendem como agradar, como sobreviver, como dar certo. São instruídos e emocionam as famílias no dia da formatura ou no dia do casamento, por exemplo. Quando vencedores, transformam tudo em pódio, estruturam suas motivações para conseguir, para vencer.

Esse oportunismo, essa excelência de atitudes, de adequação e adaptação cria as autoridades, mestres nas gavetinhas do saber fragmentado, administrado e guardado. É a transformação da possibilidade em necessidade. O indivíduo é desumanizado nesse processo, mas adquiriu condição de se fantasiar de humano. A aparência, a máscara, tudo consegue ornar. Desse modo também se desloca o vazio, pois tudo que se sente, tudo que motiva e empolga resulta do que se tem, do que se consegue, do que se amealha.

Esse processo é esvaziador visto que é por meio dos polarizantes do bom resultado, futuro e passado garantidos e gratificados, que tudo se percebe, discrimina e satisfaz ou frustra. Pelo reflexo se configura o existente, pelo resultado se determina a validade da ação, do existir e assim se preenche o vazio, com suas características plataformas de inveja, medo, raiva, apego, dedicação ferrenha e comprometimento com o que constrói seu poder e proteção. Dedicando-se à satisfação de suas necessidades de sobrevivência o ser humano dorme, bebe, come e se multiplica em inúmeros filhos, que são iguais, opacos e semelhantes a ele próprio.

Estruturar a vida e relacionamentos em função de resultados, evitando fracassos e atingindo sucessos é esvaziador.