Estava agonizando... Esperando...
Foi só eu chegar, pegá-lo...
Limpar, enrolá-lo para aquecer...
Ele respondeu... E morreu.

(Palavras consternadas do dono de um gato ao perdê-lo)

Embora no mundo moderno infelizmente ainda seja muito comum casos de violência e maus tratos a animais, estarei direcionando o foco deste artigo para a situação oposta, isto é, pessoas que amam e respeitam seus animais e se empenham em preservar seu bem-estar, sua saúde e qualidade de vida. Assim, cada vez mais nossos pets vêm ocupando um lugar de destaque como membros de nossas famílias e por esse motivo entendi que o tema era suficientemente importante para elegê-lo como objeto do presente artigo.

Tenho observado que a relação que humanos constroem com seus animais de estimação é diferente daquela que estabelecem com outros seres humanos. Já ouvi de diversas pessoas que sua dor maior se daria face à perda de seu pet a despeito de qualquer outro membro da família ou pessoa de suas relações. Pessoas há que gastam muito dinheiro em clínicas veterinárias na tentativa de salvar a vida de seu amigo mais fiel.

Todos os dias nas redes sociais, usuários os mais diversos postam fotos de seus cães e gatos, pelos quais são apaixonados, de animais para adoção ou simplesmente fotos de bichos que não conhecem (não possuem vínculo), até mesmo silvestres, mas pelos quais se encantam por sua beleza e exuberância.

O fato é que desde os tempos mais remotos, os animais sempre exerceram um fascínio e tiveram um papel muito importante na vida do homem, seja por sua beleza, sua inteligência, suas habilidades instintivas, seu poder oculto, seja por suas incríveis formas de expressão e comunicação ou até mesmo pela maneira peculiar como expressam seus “sentimentos”.

Estudos científicos já foram realizados para tentar desvendar a natureza do vínculo entre os pets e seus donos1, tendo sido corroborado o que todos nós na prática já sabíamos, isto é, que sua relação é semelhante à de mãe e filho. Outro objeto de estudo tem sido o que é chamado de “a alma dos animais”. A obra de Ernesto Bozzano, Os Animais Têm Alma?, é um best seller sobre o assunto.

As palavras que estão na epígrafe deste artigo constituem um relato real e contundente de Fernando [nomes fictícios], cujo gato morreu em seus braços. Tive a alegria de conhecer e conviver com Fabrício (o gato), pois ele, como todo bom felino, adorava perambular pela vizinhança.

Fabrício era livre e parecia pertencer apenas a si próprio. Assim, costumava escolher na companhia de quem e onde queria estar. Considerando o fato de que nem todo vizinho poderia lhe ser simpático, este comportamento também o expunha a alguns perigos, pois a região em que transitava pertence a um condomínio rural, uma região montanhosa com muitas pedras e animais peçonhentos. Em um incidente, chegou a cair em um buraco e apareceu na casa de seu dono todo enlameado. Fernando o acolheu, tendo lhe retirado toda a lama. Quando foi levado e permaneceu internado em uma clínica veterinária, sentiu-se aprisionado. Ao voltar para casa, assim que teve uma oportunidade escapou, e mesmo fragilizado, manteve-se sumido por um bom tempo. Fernando, preocupado, enviou mensagens à vizinhança, pois seu gato não havia se recuperado plenamente e necessitava de cuidados e medicação.

Após muitos dias decorridos, Fabrício reapareceu em minha casa e lá se enfurnou. Magérrimo, estava em estado crítico de saúde e parecia extremamente debilitado. Ele parecia ter me escolhido para cuidar dele (talvez soubesse que eu não iria levá-lo para uma clínica veterinária novamente). Fiz o que pude por ele. Dei-lhe carinho, atenção, remédio, alimento e uma cama confortável. Assim que se fortaleceu, Fabrício continuou transitando entre a casa de seu dono, a minha e outras da vizinhança.

Ao retornar de uma viagem, fui surpreendida com a notícia de sua morte. Fabrício esperou que seu dono chegasse para lhe “agradecer” por tudo que fez por ele, para lhe dizer adeus e para morrer em seus braços em seu último ato de entrega e sua rendição final...

Continuando a refletir sobre a natureza deste laço singular, observo que da parte dos humanos para com seus pets, é com estes últimos que exercitamos nossa capacidade de amar naquilo que ela tem de mais visceral, pois podemos amar do jeito que sabemos e que nos é possível e está tudo bem e somos aceitos assim mesmo.

Desta forma, o humano encontra em seu pet ampla acolhida sobre sua verdadeira natureza, na mais pura expressão de seu self, sentindo-se então aceito incondicionalmente. Vivemos em uma sociedade cada vez mais sofisticada e competitiva, sendo que a convivência com nossos pares obriga-nos a usar máscaras e ocultar nossas fragilidades e vulnerabilidades. Muitas vezes, falamos e nos comportamos de acordo com o que é de bom tom e nos é conveniente, mas é somente quando chegamos em casa que podemos tirar o sapato que nos aperta o pé, afrouxar ou trocar de roupa ou até mesmo ficar nu e, sobretudo, tirar a máscara. Com roupa ou sem roupa nosso fiel amigo nos recebe da mesma maneira. Tudo que ele pede é um afago e um pouco de comida.

Nosso pet é aquele que mais facilmente acolhe as projeções de nossa alma, o objeto através do qual podemos suprir nossas carências, o “companheiro” que nos falta, nos mais diversos sentidos e especificidades.

Por sua parte, o animal sabe quando está sendo amado e cuidado. Seu dono é quem ele espera chegar todos os dias do trabalho... Seu dono é o humano que se destaca de todos os demais, é quem ele conhece pelo cheiro ou pela própria aura, pois é capaz de pressentir sua chegada quando está ainda a quilômetros de distância. Em nosso caso, o gato Fabrício, apesar de perambular pela vizinhança, quando escolheu morrer nos braços de seu dono revelou que possuía uma noção clara de pertinência / pertencimento, isto é, ele sabia que Fernando era o seu dono e consolidou de uma vez por todas e definitivamente este vínculo, quando escolheu o seu colo como o melhor lugar para deixar seu corpo físico.

Paradoxalmente, nossos animais vêm para nos tornar mais humanos e para nos chamar a atenção sobre as coisas que realmente importam na vida e que precisamos aprender. Passamos a vida a pagar contas, correndo atrás do dinheiro e buscando um lugar de destaque na sociedade. Nessa corrida desenfreada invertemos valores e deixamos para segundo ou terceiro plano os laços que conseguimos construir, seja com outros humanos ou animais.

Sermos “grandes” na grande escola da vida significa demonstrar o quanto somos capazes de amar e deixar-nos amar por outro ser vivo. Também é ser capaz de “semear” no coração de outro ser vivo e não negligenciar outra forma de vida, seja ela qual for. Remete-nos a quais vínculos conseguimos construir e como os cultivamos. Em nosso exemplo, o vínculo entre Fernando e Fabrício parece ter sido muito bem cultivado por ambos. A tão conhecida frase de Saint-Exupéry - “Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas” - é perfeitamente aplicada neste contexto.

São os vínculos que conseguimos cultivar que nos ajudam de fato a crescer. O crescimento é o fim último de todo ser vivo de passagem por este planeta. Não nos esqueçamos jamais desse pequeno detalhe, já que esta oportunidade que nos está sendo dada é finita.

Pessoas há que estão nos mais diversos estágios de evolução, e aquelas que cometem violência e maus tratos contra animais vão precisar ser “domadas”. Elas infelizmente ignoram que as leis do planeta para essa finalidade são bastante duras. A gatinha Clarissa está ajudando a domar sua dona na medida em que mesmo tendo sido brutalmente afastada de seus filhotes para cirurgia de castração, ainda assim ao retornar continuou amamentando-os e produzindo leite, e o fez mesmo após ter sido definitivamente separada deles.

A dor da perda dos filhotes para Clarissa se manifestou fisicamente em decorrência do intumescimento de suas mamas, que se avolumaram, ficaram vermelhas e quentes, manifestando o que popularmente é chamado de leite empedrado (ingurgitamento mamário2). Ao testemunhar o sofrimento de sua gatinha, sua dona também sofreu simultaneamente, isto porque afinal, tinha seu modo próprio de amar e sensibilidade suficiente para saber que as coisas não estavam bem para sua pequena felina. Teria ela, entretanto, parado para pensar, que tendo sido o agente dos acontecimentos, poderia ter agido de maneira diferente? Teria admitido para si mesma que cometeu um erro?

Admitir que cometemos erros já seria um bom começo.

O passo seguinte: aprender a “traduzir” as consequências de nossas ações, já que os acontecimentos da vida estão, a todo o momento, a nos dizer coisas.

O terceiro passo: ouvir o caminho... (desenvolver a audição do lince).

O quarto e último passo: estar disposto a se tornar uma pessoa melhor.

Em qual destes patamares você se encontra?

Notas

1 Segundo uma pesquisa realizada pela Universidade Azabu localizada no Japão, existe sim um vínculo especial entre o homem e seu melhor amigo. Esse vínculo é construído a partir de um processo hormonal ativado quando se olham, que funciona de modo semelhante ao que ocorre entre mãe e filho. É que esse olhar eleva tanto no animal quanto no seu dono os níveis de ocitocina no cérebro, hormônio relacionado à conduta paternal e maternal. A ocitocina atua também como neurotransmissor no cérebro e tem um papel importante no reconhecimento e estabelecimento de vínculos sociais, assim como na formação de relações de confiança (Mahau Cruz, Variedades, Facebook).

2 Lembrando que a separação da mãe de seus filhotes antes do que seria o prazo natural para o desmame, seja para doação ou para fins comerciais, é o procedimento de rotina da grande maioria daqueles que dizem “amar” seus animais, e que optam pelo procedimento do não abandono ou do não sacrifício ao nascer.

Referências

Amor entre cães e dono é igual mãe e filho.
Bozzano, Ernest. Os animais têm alma? Tradução de Francisco klörs Werneck - 7ª. ed. - Bragança Paulista, SP, Editora 3 de outubro, 2011. 160 p.
Saint-Exupéry, Antoine de. O pequeno príncipe. Tradução de Ruy Pereira - 1ª. ed. Brasil, São Paulo, Editora Escola, 2015.