Quando viajamos, percebemos o mundo diferente do nosso cotidiano e aprendemos rápido e de forma descomplicada como cada indivíduo, e o coletivo, conseguem se encaixar, fazendo manobras e vivendo de forma a conjugar com o tempo e espaço que os rodeiam, a beleza e possibilidades presentes.
Acredito que é nesse desconhecido que as pessoas conseguem viver intensamente e de forma original, sem se preocuparem com o que já foi ou com o que virá, porque o novo que há em cada olhar é suficientemente preenchedor no estágio presente. Seria essa uma forma de viver o mundo sem muitos paradigmas e ao mesmo tempo acolhendo as necessidades momentâneas? Sim existe uma ordem expressa em sorver todas as novidades de forma a se esmagar junto a multidão em busca de informação, sensações, vivências e conhecimento. são essas experiências vividas ou notadas que me pego compartilhando nesse texto.
Primeiro conto
O rapaz se instalou na mesa de um serviço de café do aeroporto de Londres, numa madrugada fria e chuvosa, talvez e se não me falha a memória, o único local aberto para os desvalidos que por ali pestanejavam a espera do amanhecer para seus destinos. Espera longa e fria, mas há aqueles que mesmo com todos esses revezes se encontram e se acolhem em seus próprios rituais.
Feições finas, óculos de graus, muitas tatuagens, os dentes malcuidados e um total desinteresse pelo entorno. Carregava um acervo de “apetrechos”, que preencheu a mesa escolhida pelo referido estranho. Ali mesmo deu-se seu escritório onde pode colocar seu casaco, mochila e bolsas de forma tão intima, como se não houvesse lugar melhor, que o momentâneo espaço que o recebia.
Declarou aberta a sessão de colagem de figurinhas, pois retirou de sua mochila um arsenal bem composto de álbuns gigantes, com monte e montes de figurinhas todas encarrilhadas, bem guardadas e cuidadas.
Era ali mesmo junto ao seu sanduiche de carne, seu chocolate quente e uma latinha de energético, aos quais não se importava muito, e por muito tempo esquecidos de serem levados a boca que ele gastava seu tempo absorto e dedicado. Achei incrível a intimidade com o qual ele se apossou do local.
Pois bem, postou-se como se estivesse em casa, e de forma tranquila e gentil escolhia as tais figurinhas para completar o álbum. Por ali demorou-se, sem interagir com mais ninguém ou ao menos sentir sono, fez dali o seu lugar de hobby ou ainda um novo tipo de trabalho.
Segundo conto
Ao entrar no trem percebi que em uma das cadeiras individuais estava uma moça alta e de ossatura larga, que logo pôs-se a arrumar na mesinha destinada ao lanche, uma bolsa gigante com muitos itens que claramente ela usaria em segundos. Dedicou-se bravamente a ir de sua cadeira ao banheiro do trem algumas vezes, e voltava de lá como se tivesse tomado banho. Sentava-se em sua poltrona e fazia sua higiene noturna do rosto, com muitos cremes. Após todo ritual de skincare colocou viseira de olhos e um bom travesseiro de pescoço e dormiu um sono profundo até o amanhecer, onde tomou seu café de forma natural. Via-se que após longo sono estava revigorada e faminta. Dormira como um anjo.
Terceiro conto
Ainda no trem, outra passagem interessante: uma moça sentada na poltrona perto da janela, ao se acomodar, colocou o fone de ouvidos em sintonia com o vídeo do celular a sua frente, e encarou o desafio de montar um lego ao mesmo tempo. O que fez com muita rapidez e de forma descomplicada. Fiquei pensando como tudo isso parecia leve, confortável e até habitual.
Não importa muito em que parte do mundo estejamos, poderá ser ali mesmo um lugar de referência, acolhimento, lazer ou trabalho. Cafés se tornaram ótimos escritórios virtuais, o lazer pode estar bem perto no aeroporto, rodoviária, parque ou no meio de uma multidão estranha. O importante é o que cada um se coloca em cada lugar. Histórias sem fim que nos chamam atenção e sinalizam o comportamento de cada individuo, no mundo.
Quarto conto
Outra passagem, também do trem: uma jovem senhora acomodou seu guarda-roupas no compartimento acima do assento, como agasalhos, cachecol, luvas, sobretudo e muitas bolsas.
Em seguida abriu o computador e iniciou um percurso pelas telas planilhadas e cheias de mensagens, as quais foi respondendo demoradamente até seu ponto de descida. Minutos antes recolheu toda a bagagem de forma tão natural e milimetricamente atenta ao tempo, que me pareceu rotineiro.
Ao perceber esses casos lembrei do quanto minha geração era silenciosa, tímida e não ocupantes dos espaços alheios, embora vivessem em grupos fechados.
Cada detalhe desses pequenos enredos tem seus motivos pelos quais acontecem e cada protagonista é dono da sua própria história. São legitimas, engraçadas, repetidas, talvez até um pouco estranhas, mas estão ali escancaradas ao olhar curioso daqueles que também vivem suas próprias experiências.
Hoje o coletivo perdeu certa importância para um mundo individual rico em si mesmo. Talvez os lugares do mundo ou espaços abertos ou mesmo transitórios tem inspirado as pessoas a vive-los como seus portos seguros instantâneos. Não importa onde se esteja, faz-se ali a sua morada constituída. A vida acontecendo bem onde se está, sem grandes necessidades que não sejam as de seu total interesse. O tempo presente está bem ali sem mistérios.