Enquanto finalizo o preparo das lancheiras das meninas, escuto, desde longe, uma conversa inaudível, dessas em que as mães não sabem se os filhos estão brincando ou brigando. Na dúvida, decido fazer de conta que nada escuto e deixar que a manhã prossiga como deve ser: em alguns minutos devemos sair em direção à escola.
Como em todos os dias, subo para finalizar a higiene bucal antes de sair e, então, escuto a referida conversa: era uma briga. Não dessas em que a discussão cresce forte, apaixonada, aquelas em que cada uma tem um argumento a defender, mas sim dessas em que os irmãos se cutucam sem razão alguma, além do gosto de provocar um ao outro. Eu, por minha vez, solto um: “por favor, vamos começar o dia bem” em um tom um pouco mais forte do que o habitual e, graças às conjunturas universais, foi o suficiente para a provocação cessar e a manhã prosseguir conforme o previsto.
Essa cena banal e corriqueira provavelmente já foi vivenciada por inúmeras famílias, seja qual forem as suas caraterísticas particulares ou as suas origens. No entanto, a discussão matinal me impulsionou a uma reflexão sobre o poder das decisões cotidianas. Me refiro àquelas em que, muitas vezes, fazemos uma escolha rapidamente sem valorizá-la, mas que ao longo dos anos vão construindo, mesmo sem que tenhamos consciência, as pessoas que nossos filhos serão. Para ser mais específica, refleti sobre o individualismo versus o coletivismo.
A provocação superficialmente relatada ocorria no banheiro, enquanto as duas terminavam de se arrumar para sair à escola. Talvez esse comportamento pudesse ser evitado se cada uma tivesse um banheiro, um quarto para chamar de seu, onde tudo ficaria de acordo com os seus gostos e desgostos, protegido em suas bolhas nas quais se isolariam do mundo familiar, neste caso.
Lembrei-me dos eternos minutos que antecedem a seleção de um filme para ser assistido em família, já que temos apenas uma televisão. Esta fica na sala, onde temos o espaço familiar e a obrigação de chegar a um acordo sobre qual programação a ser vista, quase sempre via processos democráticos (exceto quando os ditadores mirins atuam em conjunto e as forças adultas já estão tão desgastadas que preferem ceder sem lutar). Quem sabe, comprar alguma televisão a mais pudesse diminuir essas batalhas perdidas, pudesse facilitar para que cada membro da família pudesse decidir sozinho sobre como as poucas horas em frente a essa caixa-mágica seriam gastas.
Quem sabe algum dia perco minhas forças e me rendo ao império individualista. Compro a cada membro da família seu aparato eletrônico, busco uma alternativa e proporciono um quarto e banheiro para cada ser. Quem sabe um dia...
Mas não hoje, nem nos meses próximos. No presente, sinto que viver esses momentos é a viver a vida, sem que esta passe desapercebida. Trata-se de educar, de criar, acreditando no mais puro significado dessas palavras.
Nós, humanos, somos seres sociais. Nossa humanidade é desenvolvida a partir da relação entre as nossas características pessoais, comportamentais e o ambiente em que habitamos. O espaço familiar é um dos contextos mais importantes para que as crianças se desenvolvam buscando identificar os limites que lhes permitem ser quem são como pessoas, mas que também possibilitam respeitar o espaço do outro e aprender a conviver com os demais. É um coletivo, que requer pessoas individualmente seguras e confiantes, para então progredir como família.
Acredito na vida comunitária: nessa em que os vizinhos se cumprimentam diariamente e se auxiliam sempre que necessário. Acredito que juntos, como membros de uma instituição, de um bairro ou de uma nação podemos ser mais fortes, chegar mais longe. Acredito que esse ser coletivista, que participa ativamente da vida escolar ou comunitária, é construído dentro de casa, na vida familiar cotidiana.
Em nossa casa1, continuaremos dividindo os quartos, a TV e outras tantas coisas e ações cotidianas, porque creio que é nesse espaço que aprendemos a ouvir e a nos expressar; a respeitar e a estabelecer o limite para o respeito-próprio; a decidir e a ceder quando necessário. Isso porque, essa vida comunitária que tanto admiro, penso, somente poder ser alcançada se cada casa, cada família, viver como uma pequena comunidade coletiva.
Nota
1 Tenho consciência de que a formação de uma pessoa que valorize a vida coletiva não se resume a dividir o mesmo quarto ou a mesma televisão, sei que é algo mais complexo, mas que pode ser desenvolvido em família, quando as crianças identificam dentro deste grupo familiar a valorização de cada um dos membros da família. No entanto, este artigo compartilha uma reflexão desta autora sobre o valor das nossas ações cotidianas grupais.