Pensemos em Ego como Eu em latim, pensemos nesse referencial que cada ser humano tem e em algumas questões que inevitavelmente afloram: o que permite que eu me reconheça e seja identificado?

“Estamos no mundo e com ele nos relacionamos. Relação é o contexto a partir do qual tudo pode ser enfocado, configurado, pensado, percebido. O eu é um sistema de referência. Arquivos, dicionários, índices, ícones, catálogos, mapas e bússolas existem nesse sistema. Memória é o processo psicológico responsável pela sua manutenção. Neurologicamente, os casos de amnésia são exemplares para mostrar a função da memória na manutenção do eu. Sem memória não há eu, não há familiaridade. Os registros são apagados, o indivíduo não sabe quem é, perde o ego - o eu - as referências. Estando no mundo, sempre há novos sistemas de referência. O eu surge, não importando se novo ou velho - é o eu.”

(A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu, Vera Felicidade de Almeida Campos, Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, pag. 44O)

O eu é um sistema de referência estruturado pela percepção do outro, do mundo e de si mesmo. Quanto maior a fragmentação gerada pelo autorreferenciamento, menores são os sistemas de referência, desde que, estando pontualizados, não existe sincronização, não existe contradição. É exatamente aí, nessa fragmentação, que muitas contradições, que poderiam ser configuradas e entendidas, são rejeitadas. Por exemplo, o pai que abusa da própria filha, é, pela mesma, considerado bom, por isso não pode ser denunciado, criticado, pois faz tudo por amor, “quem sabe até por didática, ensinando os meandros da sexualidade”. A falta de crítica, as divisões, não são questionadas. Tudo existe para um bem comum, para uma solução amigável.

Quanto mais o ser humano se autorreferencia, quanto mais se relaciona com o mundo, com os outros e com ele próprio por meio de seu eu, de seu sistema de referência, mais ele filtra, mais ele dilui o que está diante dele em seus referenciais, consequentemente, menos dinâmica, menos possibilidade de transformação, mais ajuste, mais adaptação.

Esse processo de espalhamento e fragmentação do Ego se constitui na forma pela qual indivíduos são desumanizados por processos de submissão em função de referenciais considerados salvadores: dinheiro, amor, proteção e reconhecimento social, por exemplo. Essa é a regra que os impede ou ajuda. Manter certas imagens, certas máscaras socialmente aceitáveis faz com que os indivíduos não percebam suas contradições relacionais. Faz com que “beijem a mão que espanca”, faz com que escondam agressão e opressão para não manchar nem expor o bom nome da família, tanto quanto para não atrapalhar sua trajetória de sucesso. Esconder o carrasco é uma maneira de salvar a própria pele, entretanto é também o processo que se constitui em espalhamento do Ego, é a queima de arquivo que tudo salva, mas que destrói referências e trajetórias, colocando no limbo do futuro o que precisa ser enfrentado para unificar divisões, diluição, espalhamento.

Evitar contradições é impedir unificação, é exilar-se de si mesmo, de suas possibilidades de relacionamento que foram transformadas em necessidades a satisfazer, em imagens aceitáveis a fabricar e manter.