Falei já do labirinto burocrático a propósito da investigação científica. Em Creta, ele ocultava o Minotauro: quem entrava, já não saía… A burocracia tem um refinamento: deixa sair quem entra, mas à bout de souffle, destruído… Kafka dedicou-lhe dois livros: O Castelo (1922, publ. póst.) e O Processo (c. 1920, publ. 1925). Todas as distopias o têm… o problema é que a realidade também.

Retomo o tema, mas para observar como o comum cidadão português pode ser facilmente eliminado dos sistemas assistenciais através de mera burocracia, deixando de constituir “um peso” para o erário público. E a multiplicação de passos burocráticos desenvolve uma cartografia circular na geografia nacional, correspondente ao nó mental no cidadão…

Poderia falar dos casos das vítimas dos trágicos incêndios de Junho e de Outubro de 2017, com um rasto de destruição de pessoas, casas, empresas e património florestal, em que o cuidado, empenho, esforço e abnegação foram tão grandes que apenas em 13/Janeiro/2018, o Governo teve, finalmente, uma reunião de 11 horas para definir as medidas a implementar, anunciando-as. No entanto, esse quadro geral de medidas a implementar (leia-se: plano, projecto) implica etapas em cadeia, cada uma com o seu timing: p. ex., a comissão para pagamento de indemnizações aos familiares das vítimas dos incêndios terá 30 dias para fixar os critérios, cabendo depois à Provedoria de Justiça estabelecer o valor das compensações, o que também exige ponderação e decisões que, depois, ainda terão de percorrer outras etapas… entretanto, os meses dão lugar às estações e estas aos anos.

E não esqueçamos que, no âmbito deste processo, num Estado simplex, informatizado, aspirando ao progresso científico e tecnológico, temos o Governo a propor e implementar, na prevenção de incêndios, projetos-piloto de “cabras sapadoras” para limpar as florestas (“com rebanhos dedicados à gestão de combustível florestal na rede primária”!). E temos a Associação Nacional de Bombeiros Profissionais (ANBP) a reagir ao anúncio, "considera[ndo] abusiva a utilização do termo 'sapadoras', uma vez que o mesmo reporta a uma classe profissional que conta com mais de 600 anos de história em Portugal e que merece o respeito de todos e sobretudo dos órgãos de soberania".

Deixo o assunto que já me ocupou em reflexão anterior e passo a outro, pois o livro da vida é manancial inesgotável.

Um exemplo em 4 etapas na ADSE portuguesa

Vejamos um exemplo de inexcedível eficácia e de refinamento burocrático no caso da ADSE portuguesa(agora, Instituto de Proteção e Assistência na Doença, depois de ter sido Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas), que “tem por missão assegurar a protecção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, prevenção da doença, tratamento e reabilitação” (1ª função na sua Carta de Missão online) e que, naturalmente, melhora as suas contas com a redução de apoios e… de beneficiários.

Uma Senhora minha Amiga, com 90 anos e uma pensão de sobrevivência do marido falecido, recebeu uma carta da ADSE exigindo, ao abrigo do artigo 7º do Decreto-Lei 118/83, de 20/Fevereiro, uma declaração da Segurança Social (Segurança Social) e/ou do Centro Nacional de Pensões sobre a sua situação contributiva: esclarecendo se tem mais algum subsídio, nomeadamente, de desemprego (sendo o limite de idade de 70 anos na função pública) a declaração de IRS (Imposto de Rendimentos de Pessoas Singulares) completa e com todos os anexos.

Toda esta informação pode ser cruzada e acedida pelos diferentes serviços entre si, bastando uma autorização assinada pelo próprio. E, efectivamente, a autorização é pedida, mas só produzirá os seus efeitos… daqui a um ano!

Até lá, há que enviar a exigida documentação, sob pena logo anunciada:

“os direitos serão cancelados à data do términus do cartão que se encontra em seu poder”.

No caso da minha Amiga, ela tem uma pensão de sobrevivência tão baixa que… está dispensada de fazer declaração de IRS. Logo, não tem este elemento para apresentar.

Tentei ajudá-la com a tal declaração da Segurança Social.

Diligências online

O portal da Segurança Social (Segurança Social) exige que se tenha conta com senha para obter alguma informação.

Para obter a senha do sistema, as instruções constam do seguinte guia online:

“Está disponível para download na Play Store a aplicação sigaApp (Smartphone e Tablet para sistema Android e iOS, desenvolvido pelo Instituto de Informática, I.P.), que permite a emissão de senhas de atendimento digitais, por meio de dispositivos móveis, sem necessidade de deslocação prévia ao atendimento presencial. Esta aplicação encontra-se disponível para os atendimentos presenciais das Secções de Processo Executivo do IGFSS.

Comodamente, pode saber:

  • qual o serviço de atendimento mais próximo para tratar do seu assunto,
  • qual o número de pessoas em espera,
  • qual o tempo de espera da última senha atendida.

Pode retirar as senhas de atendimento a partir das 10:00. Para ser atendido basta esperar pela sua vez e apresentar a senha do dispositivo móvel na receção do serviço e ao atendedor.”

Para o cidadão de 90 anos, isto equivale a chinês…

Eu sei que Fernanda Tomás, country manager da Ericsson Telecomunicações, definiu como ambição da empresa *“promover a literacia informacional e tecnológica /…/ sob o mote “Communication for All” — criar um mundo interligado através das comunicações”*.

Mas será que o país quer realizar esse objectivo, obstando aos direitos e deveres dos cidadãos?

No ranking do DESI – Digital Economy & Society Index, Portugal estava em 14º em 2016 e em 15º em 2017 e conta com um máximo de 68% de utilizadores da internet, ferramenta decisiva para a nossa burocracia actual.

A internet custa dinheiro e os reformados vêem-se obrigados, pelo baixo nível das reformas, a prescindir dela, quando a tiveram… 32% dos cidadãos podem, por isso, ficar diminuídos no exercício da sua cidadania e podem perder direitos.

Há, porém, mais a considerar. Avancemos, pois.

Mesmo com senha do sistema, não é possível retirar de lá o documento informativo e os funcionários dissuadem de fazer pedidos online.

Sem senha do sistema, não é possível fazer a marcação do atendimento presencial. Ironicamente, a mensagem é:

“O serviço de atendimento por marcação foi criado a pensar no conforto do cidadão, permitindo o agendamento do dia e hora para ser atendido na Segurança Social. Evite os tempos de espera. Marque o seu atendimento.”

Diligências presenciais

Desejando ajudar a minha Amiga, pedi-lhe os documentos e fui tratar do assunto no dia 17/1/2018.

De manhã, fui à Loja do Cidadão de Linda-a-Velha, zona de residência da minha Amiga. Tirei senha, esperei, fui atendida e disseram-me que não podiam tratar do assunto: deveria dirigir-me a uma Loja do Cidadão como a das Laranjeiras.

Fui à Loja do Cidadão das Laranjeiras. Tirei, sucessivamente, 3 senhas para os serviços recomendados. Os 2 primeiros não podiam. No 3º balcão, a funcionária informou que deveria dirigir-me à sede da ADSE para obter o documento; face à minha objecção de que a ADSE não podia declarar o que declara não saber, exigindo que lhe seja enviado, deduziu, brilhantemente, que, então, talvez fosse de eu me dirigir à Segurança Social… recomendou a de Algés.

Dirigi-me ao balcão da Segurança Social na loja do Cidadão de Algés. Era um balcão de atendimento exclusivamente por marcação (o único dos serviços a funcionar assim naquela loja do Cidadão).

Diligentemente, o segurança ouviu-me expor o problema, leu a carta da ADSE e explicou-me que a porta fecharia às 16h30m e que os serviços teriam mesmo de atender todos os que estivessem lá dentro.

Esperei pacientemente até às 16h, altura em que a loja se esvaziou totalmente e ficou apenas com 2 dos 4 balcões a funcionar: o da Segurança Social e o do Espaço do Cidadão. Neste, o funcionário conversava empenhadamente ao telefone sobre assuntos diversos, nenhum deles de trabalho…

Dirigi-me à funcionária da Segurança Social, simpática, que me esclareceu não poder corresponder ao meu pedido: o sistema só permite acesso aos dados dos cidadãos inscritos para atendimento.

Expliquei a peregrinação do dia e as dificuldades da minha Amiga e minhas e, muito compreensiva, manifestou a sua crítica ao sistema… sem poder fazer mais nada.

Recomendou-me que me dirigisse a um balcão da Segurança Social, marcando previamente ou, na ausência de senha do sistema, de manhã cedo, em balcões que funcionem por senha, como o das Laranjeiras… ou o de Paço de Arcos.

Solicitei um e-mail da Segurança Social que o balcão representa. A funcionária disse não ter nenhum e, pressurosa, procurou-o no site da Segurança Social por acesso exterior, dizendo que, se não estivesse lá consagrado, eu teria de enviar a mensagem via plataforma (de que não tenho senha)… ou ir pessoalmente. Os e-mails que tem são da Segurança Social, sim, mas para funcionamento interno, pois estão no Outlook… (hesito em interpretar como ignorância ou como má-vontade em atitude tão calorosa!).

Fiz menção de ir ao balcão da Loja de Paço de Arcos, mas a funcionária explicou-me logo que já não poderia ser atendida, pois o atendimento terminara às 16h em todos os balcões que funcionam por senha.

À saída, interpelei o segurança sobre a informação que me tinha dado e ele reiterou-a, mas acrescentando agora que… a Segurança Social é que só dá documentos aos que têm marcação.

Saí da loja às 16h15m, deixando-a completamente vazia, salvo os 2 funcionários mencionados, o que continuava a conversar telefonicamente e a que me atendera…

Regresso a casa

Ao chegar a casa, acedi à página da Segurança Social, em busca de informação sobre os balcões de atendimento por senha presencial e verifiquei que os de marcação são de fácil visualização e busca na mesma página; os de atendimento por senha presencial estão dispostos com uma compexidade que obriga a correr 443 resultados um a um, tarefa impossível para qualquer infoexcluído.

As diligências presenciais expostas saldaram-se por custo do meu dia de trabalho para acompanhar a minha Amiga, cidadão (semi-)dependente; custo de transporte (gasolina, desgaste do carro, estacionamentos diversos totalizando um dia de trabalho efectivo); horas de deslocação. Em viatura própria: mais de 3h (idas e vindas), fora o tempo para estacionar. Se tivesse ido de transportes, teria tido muito mais horas de deslocação e diversos transportes públicos; uma colecção de senhas presenciais de resultado nulo e outra de tickets de parquímetro atestando o desperdício; ocupação inútil do tempo de 3 funcionárias que me atenderam e dos seguranças que guardam, ciosamente, a máquina das senhas… que a Segurança Social não tem para fornecer senão de manhã cedo!... desgaste e cansaço imenso da minha Amiga; resultado NULO!

Terei de dedicar mais 1 ou 2 dias ao mesmo assunto;1 dia de falta de produtividade profissional (salvo esta crónica que redigi para… descansar e desabafar!); previsão de mais 1 ou 2 dias de falta de produtividade profissional para resolver o assunto.

Novas diligências (online & presenciais)

Depois de tentar corresponder às exigências da tal app e de contactar telefonicamente a Segurança Social, desesperada, procurei os e-mails dos responsáveis institucionais da ADSE, da Segurança Social e da ATT para lhe expor a situação e solicitar à ADSE, a ponderação da documentação que consegui reunir e dispensa de apresentação de mais:

a declaração da CGA comprovativa dos rendimentos de 2016. De acordo com o montante da pensão, único rendimento auferido, a pensionista estava dispensada de apresentar IRS, pelo que ele não está acessível na plataforma da ATT, usada por quem lhe tratava do assunto;

a declaração da pensão da CGA referente ao mês de Janeiro de 2018;

a assinatura da autorização de consulta, pelos serviços da ADSE, da situação do Beneficiário NUB xxxxxx;

à Segurança Social e à ATT, a documentação em falta.

Apesar do silêncio das outras instituições, a ADSE respondeu pronta e atenciosamente: faltava, ainda, a declaração de IRS completa do IRS ou a declaração de que estava dispensada de a apresentar devido aos rendimentos auferidos.

Dirigi-me à ATT, desta vez, com toda a documentação da minha Amiga e a correspondência trocada com a ADSE.

Superada a dificuldade das senhas e das esperas (ao longo desta visita à ATT), declaram que, para corresponderem ao meu pedido, teria de estar presente a Senhora.

Explicando a situação etária e de dificuldades da minha Amiga, a quem mito custaria mais um périplo pela administração pública e que já tinha feito a sua prova de vida anual, pedi compreensão para a situação.

Comunicaram-me, então, que deveria levá-la a um notário para fazer uma procuração que me desse poderes de representação dela na ATT.

Face à inabalável defesa da necessidade de presença da Senhora ou da procuração que também o exigiria, telefonei-lhe e pedi-lhe que fosse, naquele momento, ter comigo à ATT de táxi, pois eu não podia ir buscá-la, sob pena de perder a vez.

A Senhora, nervosíssima com a urgência, foi rápida na chegada à ATT.

Após as inevitáveis esperas e explicações, incluindo a paragem temporária do computador, lá obtivemos a dita declaração!

Enviei o documento da ATT para a ADSE e informaram-me de que estava tudo regularizado para este ano, mas que tudo se repetiria no próximo ano, salvo conclusão do protocolo entre a ADSE e a Segurança Social para a consulta dos dados autorizados, que aguarda a “assinatura do Presidente do instituto da Segurança Social”, “não consegu[indo a ADSE] prever para quando a sua conclusão” (apesar do Decreto-Lei n.º 151/2015 [há quase 3 anos!], que “Estabelece a obrigatoriedade de consulta da Rede Operacional de Serviços Partilhados de Tecnologias de Informação e Comunicação da Administração Pública no âmbito dos procedimentos de aquisição de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, e regula a aquisição e a utilização de serviços de comunicação pela Administração Pública” (sic).

Agradeci e saudei…

Em suma…

Da Loja das Laranjeiras à Loja das Laranjeiras, da ADSE à ATT e à ADSE, eis como a circularidade burocrática se desenvolve e exprime até geograficamente nos serviços públicos nacionais que desejam eliminar beneficiários do sistema, qualquer que ele seja, seja de que maneira for… no percurso, induz-se uma neurose, desgasta-se o cidadão e impede-se o funcionário de boa-vontade de trabalhar mais e melhor. Tudo isto afecta a saúde do cidadão, com o efeito desejável para as contas públicas: se não conseguir resolver o problema, a eliminação do sistema é automática…

se conseguir resolver o problema, o desgaste aproxima-o mais rapidamente do colapso ou do AVC, garantia de eliminação consequente do serviço activo e, na falta de condições para a aposentação/reforma, atirando-o para o desemprego… de que não usufruirá por incapacidade de… marcar o atendimento via online ou agarrar a célebre senha nos balcões que a dão.

Eis, também, como um sistema onde se implantou o Simplex funciona!

Afinal, as lições da mitologia foram aprendidas (até actualizadas pelo Astérix!), mas instrumentalizadas contra o cidadão:

Filho de uma traição de Zeus a Hera, Hércules atrai a vingança desta, que lhe provoca um acesso de loucura durante o qual ele mata a esposa e os filhos.

Ao tomar consciência do acontecido, Hércules fugiu e, por fim, visitou o oráculo em Delfos, desejando recuperar a sua honra. O oráculo apontou-lhe, como penitência, uma série de 12 tarefas impossíveis… antecipou, assim, a burocracia.