Há momentos que devem ser únicos na vida dos povos e vividos com intensidade e alegria, para que possam ajudar a estreitar cada vez mais o sentimento de pertença das comunidades, fomentar a reflexão através do diálogo geracional, partilhar experiências e reafirmar o papel das instituições na consolidação do Estado de Direito democrático.

Sem dúvida que o aniversário dos 50 anos da independência é um desses momentos absolutamente ímpares na vida de um país.

Celebrar as 5 décadas de independência significa, antes de mais olhar reflexivamente para o passado, analisar o presente e projetar o futuro.

Ora, olhar para o passado quer dizer falar daqueles que permitiram que nós chegássemos ao patamar civilizacional em que nos encontramos.

Primeiro devemos falar do povo caboverdiano, um povo trabalhador, resiliente e extremamente persistente que, depois de viver um período colonial de 500 anos, participou de forma ativa e decisiva na luta pela independência nacional e conseguiu fazer triunfar os seus ideais de liberdade.

Mas nós sabemos que de todos os coletivos há sempre indivíduos que sobressaem pela especial qualidade da sua contribuição para o triunfo dos processos.

No nosso caso penso que todos concordarão comigo que uma referência especial deve ser feita a alguém que soube como ninguém empunhar a bandeira da luta pela Liberdade e conduzi-la à vitória final. Como todos devem imaginar estou a referir-me ao icónico Amílcar Cabral, o líder que conduziu a luta armada de libertação nacional, mas também deu sempre grande atenção a vertente cultural, humanista e desenvolvimentista desta, pois a luta pela independência, como afirmava, não quer significar apenas ter ganho uma bandeira e um hino, mas é fundamental que se criem as condições para uma vida cada vez mais digna do povo que se torna independente.

Também devemos falar dos outros Combatentes da Liberdade da Pátria que sem olhar a prebendas se entregaram à luta, alguns com sacrifício da própria vida, como aliás aconteceu com Cabral.

Eles foram os primeiros cabouqueiros da Reconstrução Nacional e permitiram que, efetivamente, no dia 5 de julho de 1975, em Cabo Verde, se hasteasse a bandeira, e se cantasse o hino nacional.

Mas para que isso acontecesse foi necessária a contribuição também dos mais diversos setores da população caboverdiana, nomeadamente daqueles que trabalharam para a realização das eleições que levaram à formação da Assembleia Constituinte cujo os 50 anos celebramos.

Foi só assim, com o trabalho de todos, que solenemente se proclamou a independência Nacional Cabo Verde e o nosso país se constituiu em Nação independente e Soberana, passando a integrar o concerto das Nações livres do mundo!

Cabo Verde era um país considerado inviável, um pequeno país pobre e periférico, sem riquezas naturais que pudessem auspiciar um futuro materialmente confortável. Era um país que integrava o grupo de países menos avançados do mundo, os PMA.

Como é que passados 50 anos conseguimos não só sobreviver como somos agora um país de desenvolvimento médio alto, como há dias foi anunciado, um país viável e inclusivamente temos o maior per capita dos países africanos de língua oficial portuguesa que, mais ou menos na mesma altura, ascenderam à independência.

Podemos considerar que isto foi aquilo a que eu chamaria um verdadeiro milagre.

Mas como se produziu este milagre e qual o papel que nele desempenhou o Recenseamento Eleitoral?

Em 1974/75 vivíamos um período de transição entre a época colonial e a independência nacional.

Estávamos assim a iniciar em pleno o processo para a declaração de Cabo Verde, como país independente, soberano e livre.

Quando me convidaram para integrar a Comissão de Recenseamento Eleitoral de São Vicente é claro que respondi prontamente: presente!

Vejam só,

Estávamos a viver um momento extremamente singular. As pessoas estavam todas em euforia a preparar o nascimento de um país.

E por onde começava esse processo?

Exatamente pela eleição de uma Assembleia Constituinte.

Qual era o primeiro passo para a eleição dessa Assembleia?

Nada mais nada menos que o Recenseamento Eleitoral.

Por isso nos entregamos todos de alma e coração a esse processo de recenseamento, sem qualquer tipo de retribuição, apenas pela alegria de estarmos a participar no processo de construção do país.

Lembro-me que nessa altura passávamos o dia inteiro a preencher os cadernos eleitorais, no espaço da Conservatória dos Registos que funcionava na parte superior do edifício dos Correios, na rua que ia dar a Praça Nova.

Recordo-me ainda que nas eleições que se seguiram ao recenseamento, foram eleitas, nos três círculos eleitorais de São Vicente, algumas figuras pelas quais nutria profunda simpatia.

Antes de mais Luís Fonseca, que tinha permanecido por muitos anos preso no Campo de Concentração do Tarrafal por ser um militante clandestino da luta de libertação nacional.

Também Amaro da Luz, combatentes da liberdade da pátria.

Ainda Isaura Gomes, uma mulher que tinha um ativismo extraordinário e veio a ser a primeira mulher deputada no país.

Na verdade, não me lembro de muito mais pois esse era um tempo de fazer e fazer com entusiasmo, sem cansaços nem hesitações.

E fazíamos muito: eu era professora de política e português no Liceu Ludgero Lima, escrevia textos de mobilização e de escrita criativa, participava nas milícias femininas, falava nos comícios e manifestações, fazia alfabetização de adultos e sobretudo lutava pela emancipação das mulheres. Até carreira de tiro fomos fazer no quartel do Morro Branco.

E tudo nos empolgada pois estávamos a participar no nascimento de um mundo novo, de uma nação, a nação caboverdiana.

Eu era jovem e na altura estava a frequentar o quarto ano do curso de direito na Universidade Clássica de Lisboa. Assim que se deu o 25 de Abril deixei tudo e vim para Cabo Verde para participar na construção nacional, tal como aconteceu com muitos outros estudantes em Portugal.

Como Jurista tinha a plena consciência que apenas num quadro legal bem definido o nosso país poderia constituir-se em Estado de Direito Democrático.

Daí o meu enorme entusiasmo em participar nas atividades basilares de construção de um estado de direito democrático que começa exatamente pelo recenseamento da população. Este é que vai fornecer as bases para a eleição dos deputados, ou seja, para a constituição do órgão de soberania que representa a vontade popular: a Assembleia Nacional!

Mas no caso não se tratava de uma qualquer Assembleia Nacional. Tratava-se da Assembleia Nacional Constituinte, aquela que iria aprovar o Hino e a Bandeira, a nossa primeira lei magna, a Lei de Organização Política do Estado, LOPE, e sobretudo iria proclamar a independência de Cabo Verde!

Esta era uma enorme responsabilidade e posso dizer que a entrega foi total. De tal forma que não me lembro de ter havido quaisquer incidentes na feitura dos Cadernos Eleitorais.

Se bem me recordo, a votação em São Vicente decorreu sem incidentes não tendo havido reclamações a registar.

Apetece-me dizer que o país e nomeadamente a ilha de São Vicente estava a respirar em uníssono para a chegada do grande dia da fundação do nosso país.

Tenho a certeza de que um dos pilares do nosso desenvolvimento, naquilo a que lá atrás chamei de milagre caboverdiano reside exatamente na organização e realização periódica de eleições livres, justas e transparentes, e já tive a oportunidade de fazer esta afirmação tanto no país como no exterior. Naturalmente que aqui ali aparecem motivos de reclamação, o que faz parte do processo. Mas a realização periódica de eleições livres, justas e transparentes tem permitido ao povo caboverdiano mostrar o cartão vermelho aos partidos políticos da governação quando entende que as tentações hegemónicas do mundo estão a ficar acima dos interesses das populações.

É assim que durante estes 50 anos tivemos quatro alternâncias políticas, que são sem dúvida o melhor antídoto para as tentações de abuso do poder instalado, e tem permitido que a democracia caboverdiana se esteja a desenvolver e a consolidar um pouco mais a cada alternância.

Claro que todos queríamos que o desenvolvimento económico e social e o aprofundamento da democracia fossem ainda mais robustos.

Concluímos assim que as eleições constituintes de 1975 foram uma porta muito bem aberta para a construção do desenvolvimento e da prosperidade de Cabo Verde.

Praia, julho de 2025.