2017 foi um ano frutífero para a literatura feita por mulheres (para nossa alegria – e porque as escritoras em questão merecem todo esse reconhecimento, merecem muito, e, frequentemente, por não serem homens, vêm sendo escancaradamente negligenciadas, desde sempre). De Margareth Atwood (autora de O Conto da Aia) a Scholastique Mukasonga (autora de A menina de pés descalços, Nossa senhora do Nilo, entre outras obras traduzidas e publicadas no Brasil pela editora Nós), uma enorme gama de autoras internacionais e nacionais ganharam os holofotes em feiras literárias e as prateleiras das mais importantes livrarias do país.

Mas o melhor de tudo, é que nem só de grandes tiragens e selos editoriais vive esse recém descoberto ‘nicho’. Coloco entre aspas porque, na verdade, não vejo o conjunto de publicações de autoras mulheres como um nicho, mas sim como uma tentativa, válida e necessária, de equalizar o acesso das escritoras ao mercado editorial (canonicamente masculino), e facilitar o acesso dos leitores ao trabalho delas. Nada mais justo, não é mesmo?

Tem muito projeto pequeno, porém lindo e bem cuidado saindo do forno e ganhando os leitores brasileiros, ajudando a reverter essa discrepância entre a atenção dada às autoras em relação aos seus colegas do sexo masculino, além de auxiliar a construção de um novo cânone literário para o século XXI, onde essas escritoras possam ocupar seu lugar de direito ao lado dos escritores, e não apenas coadjuvarem como criadoras de uma ‘literatura menor’. A Editora Incompleta, por exemplo, começou a publicar a revista Puñado, onde traduz e publica exclusivamente contos de escritoras latino-americanas e entrevistas. A Bebel Books aposta na irreverência e aborda temas como a sexualidade feminina em publicações mais que bem-humoradas. E por aí vai.

Pois bem. Foi durante esse proveitoso ano que veio à luz Ensaio de Voo, livro da professora e escritora Paloma Vidal. Certamente uma das edições mais bonitas que passearam pelas feiras e livrarias mais descoladas (Banca Tatuí, Tapera Taperá, Arte&Letra, etc.) em 2017. Publicado pela primorosa Editora Quelônio, o livro é impresso em tipografia num papel azul todo especial, tem exemplares numerados, e todas aquelas minúcias gráficas belíssimas que só a designer Silvia Nastari sabe fazer, e que fazem você querer colocar o livro numa moldura (além de manusear com o maior cuidado do mundo – nada de ler enquanto come chocolate). Tiveram até o perfeccionismo de ilustrar as contracapas com desenhos de um desses manuais de voo que a gente acha preso no assento da frente toda vez que entra num avião. Ou seja, quando você começa a ler, já tem toda uma antecipação, uma sensação de ‘apertem os cintos, vamos decolar’, quase dá pra sentir a mudança de pressão dos ouvidos. O livro já deixa de ser apenas palavras impressas, ele é um objeto sensorial que suscita memórias e todo um aparato imagético.

No texto propriamente dito, a narradora discorre sobre os todos os voos que de alguma maneira determinaram a sua vida, inclusive aquele onde ela se encontra no momento da narração, voltando de uma visita à irmã que mora no exterior. A ação se desencadeia após a narradora começar a ler dois livros durante o voo, que a levam a escrever o Ensaio de Voo. As leituras, de alguma forma, se relacionam com sua própria história, então acabamos envolvidos com todas essas protagonistas voando juntas (a autora, sua irmã, as personagens de cada livro – todas mulheres também).

O fato de que ela inicia o Ensaio a duas horas do pouso em São Paulo dá um ar de contagem regressiva, que nos leva a ler de supetão, sem interrupções, quase sem parar pra respirar. O leitmotif extremamente contemporâneo das grandes viagens, das imigrações, do depaysement, faz com que quase qualquer um de nós consiga ter uma identificação muito pessoal com a autora e com o recorte que ela, muito criativamente, faz desse momento: o trajeto. O desconforto do espaço, o tempo livre pra pensar, os adeus, as chegadas, as partidas, todas as reverberações que isso tem em nós.

Boa viagem!