A Galeria 111 apresenta as mais recentes pinturas da artista Fátima Mendonça (Lisboa, 1964), na exposição intitulada " Caravela - Salão ". De um modo persistente e problemático, a que a artista nos tem habituado desde o início do seu percurso nos anos 90, as novas pinturas versam sobre a sua vida pessoal, nomeadamente, sobre os seus sofrimentos, as suas tristezas, as suas doenças e, particularmente, sobre os seus medos. Nesta ocasião, as pinturas são visualmente mais escuras, as cores azuis, castanhas e negras tomam conta da superfície pictórica, tornando, assim, as imagens mais obscuras, mais densas e, profundamente, mais inquietantes.

O universo imaginário que a artista nos revela poderá dividir-se em dois grandes campos fundamentais. Por um lado, a presença constante da caravela portuguesa que desbravou novos caminhos nos tempos dos descobrimentos e que, segundo Camões, ultrapassou com perseverança e bravura a figura mítica do Adamastor, como símbolo de medo e do desconhecido. Por outro lado, a presença do boxe representa a luta permanente que a artista mantém consigo própria, em que as luvas são substituídas por ligaduras, como modo de exponenciar a dor e a violência.

É, pois, na conjugação destas duas imagéticas distintas e delirantes que as pinturas começam a ganhar forma e sentido. Será também necessário recuar até à última exposição da artista para densificar a história destas novas pinturas. Em 2014, na exposição intitulada "A Cura – Operação ao cérebro " a artista representava vários cérebros, como se estivesse a fazer uma operação a si própria para se curar dos seus traumas e doenças. Após esta auto-intervenção a artista deparou-se com novos problemas pessoais que assolaram a sua vida. O ano de 2016, que agora tem o seu término, foi de facto desolador para a artista. Pode-se ler na tatuagem de um pugilista de umas das telas “Nunca mais 2016”.

Contudo, como a passagem de ano pode funcionar como um renascer e um renovar de votos e esperanças, a artista apresenta-nos um conjunto de pinturas que nutrem essa vontade de vencer os obstáculos que a vida nos reserva. Através de um traço destemido e, simultaneamente, sombrio a artista vai exorcizando as suas fragilidades e inseguranças, em obras de uma impactante força rude. O combate de boxe representa, em grande medida, a batalha que traçamos connosco próprios perante as adversidades da vida que nos aprisionam e asfixiam num espaço intenso e delimitador. É, talvez, necessário um momento libertador para que a emoção e a ironia permitam que os constrangimentos se tornem passado.

Entendendo que a arte faz parte da vida e é, ou pode ser, um reflexo dela mesma, então as obras de Fátima Mendonça estabelecem com a vida uma particular e única reciprocidade. É através da expressão artística que a artista vive intensamente a sua vida. E é através de acontecimentos externos por ela vividos que a sua produção artística se vai alimentando. Esta dupla e promíscua conjugação desvela um momento agonizante mas esperançoso. Inesperadamente, a qualquer momento, a claridade e a serenidade irão tomar parte da sua vida e da sua arte.

“Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro / Bramido muito longe o mar soou.” (Luís Vaz Camões, “Os Lusíadas”, Canto V, Estrofe 60).