Simone de Beauvoir morreu há quase trinta anos. Simone é muito conhecida porque lá nos idos de 1949 ela disse, entre outras coisas, que o que se institui socialmente como ‘mulher’, é uma construção e não uma determinação biológica. Ou seja, o papel que se espera que as mulheres desempenhem na sociedade não é estabelecido geneticamente: fato de nascer fêmea não determina o caráter de um ser humano, e que apenas os seus genes não fazem de você necessariamente maternal, irracional, caseira, dependente, incapaz, apta ao artesanato ou mais propensa a chorar ou usar maquiagem.

Pela idade, ela poderia ser bisavó da geração que está no mercado de trabalho hoje em dia, casando, tendo filhos, consumindo e votando. Mas, ironicamente, na segunda década do século XXI ainda há recônditos por aí aonde as pessoas não conseguem ler textos como o dela sem, em seguida, vomitar toneladas de asneiras, ou como disse a Eliane Brum num artigo lúcido e maravilhoso publicado no El País sobre o impacto da citação extraída de “O Segundo Sexo” na prova do ENEM, relinchar... e relincham tão alto que é impossível ignorá-los. Atento para o fato de que estes ‘recônditos’ não estão necessariamente encrustados em paisagens desérticas no Oriente Médio, aonde mulheres são forçadas a cobrir seus corpos e seus rostos, a servir e calar – estes lugares também estão ‘na nossa parte’ do mundo. No mundo ocidental, livre, democrático, liberal.

Este é o mesmíssimo mundo que dita que as mulheres se esforcem para trabalhar tantas horas quanto os homens, que postula que provemos, dia a dia, que somos tão competentes e merecedoras, e que temos as mesmas condições intelectuais que eles. E que depois vende a nossa imagem como se fossemos um pacote de cereal. O ‘eterno feminino’, mencionado por Beauvoir, está mais vivo que nunca. Só que agora, além de estar sempre lindas, perfumadas, com aparência jovem e subservientes, temos também que competir em igualdade no mercado de trabalho. Mas contanto que ganhemos menos. Pagar impostos igualzinho a ‘eles’, mas com políticos que se recusam peremptoriamente em legislar em nosso favor. Perceba, neste mundo tão liberal o sujeito “nós” é mais exclusivo que inclusivo. ‘Nós’ não inclui pobre, negro, índio, árabe, latino, nordestino, africano, e muito menos se todos os rótulos acima vierem acompanhados de um outro: mulher.

Chega a ser um descaramento dizer que vivemos numa sociedade com igualdade de gênero quando temos que ir às ruas para gritar o óbvio. Por que, não é óbvio que o útero está dentro dos limites do corpo de cada mulher? Não é óbvio que como cidadãs temos o direito de decidir a que procedimentos médicos queremos nos submeter e que remédios tomar? Não é óbvio que métodos anticoncepcionais são necessários e uma questão de saúde pública? Não é óbvio que um estado democrático de fato só pode ser laico?

Seria óbvio, talvez, se a igualdade de gênero fosse uma realidade no século XXI, quase cem anos após o polêmico texto de Beauvoir. Mas ela não é. Existem criaturas da raça humana que ainda estão perplexas com um fato cotidiano: mulheres fazem sexo porque é gostoso fazer sexo, e não porque somos incubadoras de bebês, como pensavam algumas sociedades no mundo antigo.

É bem interessante pensar no papel da mulher no mundo antigo. Em Roma, apesar da mulher não dispor dos mesmos direitos civis do homem, já se utilizavam métodos anticoncepcionais, como abortivos naturais (ervas para infusões, ou a partir das quais eram feitos espermicidas para serem aplicados diretamente na vagina), porque os romanos achavam normal a mulher fazer sexo para obter prazer – e não vale dizer que era só para as prostitutas; as grandes mulheres, matriarcas romanas também eram abertamente adeptas destes métodos. E a representação feminina pictórica e escultural que nos resta de alguns períodos do império romano não deixa sombra de dúvida: o prazer sexual feminino era um valor desejável. Não à toa Vênus, a deusa mais sensual de todas, tinha lugar de destaque nas crenças e nos lares romanos.

Hoje as Vênus romanas ainda têm destaque: mas só nos museus. Os mesmos libelos dos valores conservadores, estes criminosos por omissão, que acham que mulher que usa mini saia autoriza o estuprador, se gabam de ir ao Louvre e adorar as lindas estátuas clássicas. A Vênus de Milo, aquilo sim é arte. Porém, ignoram convenientemente o fato de que, no mundo antigo, estas estátuas eram praticamente pornografia. Elas eram esculpidas para representar o ápice da sensualidade. E causavam ereções mesmo. Existe, inclusive, um caso curioso de uma estátua de Afrodite, considerada tão bonita que ao ser encontrada foram constatados vestígios de sêmen entre as pernas da deusa, indicando que pelo menos um homem copulou com ela. Será que esta categoria de hipócrita contemporâneo teria coragem de admitir, então, que de acordo com os seus padrões de moralidade toda a arte clássica é inaceitável? Chamariam os gregos, criadores da democracia, de degenerados? O que nos restaria, então? A Bíblia, é claro. Mas, espere: não é no antigo testamento em que há poligamia?

Para agravar ainda mais a nossa situação, estamos diante de um entrave aonde qualquer tipo de discussão conceitual é infrutífera porque a lógica e a racionalidade não prevalecem. E como poderiam? Beauvoir, uma das maiores intelectuais de todo o século XX, foi reduzida a “uma baranga francesa”. Quando este é o tipo de resposta com o qual a nossa suposta (e democraticamente eleita) “elite política” pretende refutar argumentos filosóficos, como podemos esperar que qualquer tema seja discutido com a seriedade que merece? Isso nos coloca cara a cara com a perturbadora verdade: somos pobres, pobres demais, muito mais do que cremos. E pobres continuaremos.

E, é claro, com a nossa pobreza cognitiva punimos, mais uma vez, o elo mais fraco. Quando os nossos políticos negam o direito ao sexo a nós, mulheres (e não se engane - quando é proibida a comercialização legal de métodos anticoncepcionais, de prevenção ou interrupção da gravidez é diretamente no direito ao prazer sexual feminino que você está interferindo), não é a mulher de classe média/alta a maior prejudicada. Esta, ainda que lesada também, vai dar o seu jeito, pois dispõe dos meios econômicos para isso. Se verão obrigadas a recorrer à ilegalidade, é verdade. Mas as reais vítimas deste veto vergonhoso à sexualidade são as mulheres de baixa renda. Aquelas que não têm condições de comprar uma caixa de anticoncepcionais por mês, já que eles não são nada baratos. As que não têm acesso a um bom ginecologista para orientá-las. As que engravidam, muitas vezes como fruto de relações abusivas, mas que por serem pobres, ninguém chama de estupro. Essas mulheres são duplamente silenciadas, sentenciadas. Primeiro pelo gênero, depois pela classe. Elas são úteis apenas para servir, mas não lhes é dada escolha na hora de decidir o seu próprio futuro. Morrem em clínicas clandestinas, que mais se assemelham a açougues. Ou dão à luz a crianças das quais não podem, devem ou querem cuidar. São vítimas dos seus abusadores, da falta de uma política séria de controle de natalidade, da falta de educação sexual, do fanatismo religioso presente no seio de uma sociedade considerada moderna e liberal. Vítimas do Estado. Nossas vítimas. E as crianças que nascem delas, também.

E quanto mais cerceamos o direito da mulher a uma sexualidade plena, mais este ciclo doente se perpetua e se volta contra nós, sociedade, com toda a violência. Eu me pergunto, como a nossa sociedade tem o desplante de criticar o mundo árabe, por exemplo, pela submissão e maus tratos contra as mulheres, pelo fanatismo religioso, quando permitimos que o pastor da nossa igreja marginalize aquelas que exercem a sua sexualidade ativamente? Quando permitimos que o padre da nossa paróquia nos condene por reclamar autonomia para o nosso próprio corpo? E pior, quando permitimos passivamente, vergonhosamente, que estas ideias, esta atitude vexatória contra todas nós chegue a instâncias tão altas quanto o Congresso Nacional, e que elas sejam livremente reproduzidas e impostas através da Lei a toda uma nação?

E tudo isso enquanto nos voltamos umas contra as outras em querelas totalmente inúteis sobre quem é mais ou menos feminista, ou feminista do jeito certo. Ou então, exigindo que a Clarice Falcão vire negra e pobre para ter o direito de se manifestar a favor da igualdade feminina. É estúpido. É imperdoável. Na nossa falta de lucidez, ganham eles.