Tudo aquilo que escolhemos na vida pela sua leveza, em breve revela o seu peso insustentável1, observou Richard Serra ao refletir sobre os paradoxos da materialidade. Ao descrever a gravidade como uma força simultaneamente formativa e desagregadora, as palavras de Serra articulam uma investigação artística comprometida com uma realidade tangível composta por “elementos físicos constitutivos”2 , um enquadramento que fundamentou o seu trabalho desde finais da década de 1960. Em 1968, particularmente, Serra trabalhou quase exclusivamente com chumbo, um meio que reiterava a possibilidade de abater o seu próprio peso e de transpor a sua densa materialidade para um registo insubstancial. No trabalho seminal Hand Catching Lead (1968), o artista tentou repetidamente (e falhou, na maioria das vezes) agarrar pedaços de chumbo em queda, demonstrando de que forma a gravidade se configurava não apenas como um aspeto que constrangia a escultura, mas como um verdadeiro “dispositivo estruturante”.
Em diálogo com a linhagem dos filmes escultóricos3 iniciais de Serra, Inverted roofs (Telhados invertidos) de Lena Henke – a sua segunda exposição individual na Galeria Pedro Cera, em Lisboa – convoca um universo de formas onde a gravidade não só molda o comportamento da matéria, como desestabiliza as próprias condições da sua orientação. Num equilíbrio precário entre suspensão e compressão, os trabalhos de Henke parecem dispor-se perpetuamente à mercê do peso, ou do risco de inversão e colapso; uma condição ontologicamente inscrita no vocabulário material que emprega. O alumínio afirma-se na solidez que o estrutura, as cerâmicas fraturam-se sob a sua própria massa e as aguarelas absorvem a ação da gravidade na descida vertical do pigmento. No entanto, esta qualidade somática não se limita apenas à matéria. A nova paleta cromática afasta Henke da sua anterior dependência em tons escuros, orientando-a para um léxico mais pastel que recorda os legados da pintura impressionista e pós-impressionista e a sua modulação da luz através da superfície (particularmente aquela de Cézanne, cujo trabalho a artista contactou no decorrer da sua recente residência no Sul de França)4. Em cada momento, pigmento, matéria e gravidade transformam-se em elementos constitutivos de inversão, determinando os métodos através dos quais a forma emerge e se altera.
Décadas mais tarde, Serra concebeu o trabalho público site-specific Gravity (1993). Instalado no Salão de Testemunhas5 , em Washington D.C., uma laje de aço com 3,6 metros dividiu o espaço em dois, abrindo passagens alternativas e explicitando, em paralelo, de que forma a experiência espacial era inevitavelmente construída através de peso e direção. Se, em Serra, a gravidade estabelece um eixo de movimento a partir de pura espacialidade, na exposição de Henke esta é simultaneamente amplificada e subvertida, evidenciando não apenas a sua força, como um mundo ao contrário que dela parece escapar – uma casa que nos recebe sob o seu telhado invertido.
O envolvimento contínuo de Henke com elementos arquitetónicos e com o doméstico (locais socialmente codificados, refúgios para o corpo e para o individuo) não é, contudo, contingente. Desde cedo que estes fatores funcionam na sua prática como motivos de uma investigação conceptual em torno de narrativas sociopolíticas e da história da arte, demonstrando o seu interesse na psicologia das estruturas urbanas através da intervenção no espaço público. Em Inverted Roofs, o exterior reinscreve-se no interior, desde as telhas que se instalam ao contrário, ao grande corpo escultural que se estende do teto ao chão, obrigando-nos a escolher um lado. É, portanto, significativo encontrar Santa Bárbara, santa padroeira dos arquitetos, a reaparecer no trabalho mais recente de Henke. O seu resto moldado em alumínio surge no imenso Unforced error, configurado como um torso amorfo e torcido, rematado por um casco. Humano e cavalo – um elemento que acompanha a artista desde os seus anos formativos na Alemanha – unem-se sob a mesma configuração informe6 que se prolonga até às novas esculturas metade-pé, metadecasco, onde a inversão se torna também anatómica. À semelhança de um diagrama de talho, o seu trabalho revela um corpo que permanece fragmentável, sujeito à contínua possibilidade de desmontagem e remontagem.
O empenho sustentado de Henke com estruturas opositivas – do espaço, da matéria e de distinções categóricas – produz uma condição dialética na qual a própria orientação é afetada. Podemos reconhecer aqui uma ressonância com as inversões sistemáticas de Georg Baselitz, onde a alteração da orientação pictórica esvazia a figuração da sua legibilidade narrativa e redireciona a atenção para a construção da obra por meio da linha e do fragmento. Nas novas aguarelas de Henke, a inversão opera não apenas como um dispositivo formal, mas como um ato de subversão que reconfigura a própria possibilidade percetiva. Pensemos em New York I (1942), de Piet Mondrian, que por décadas foi pendurado de cabeça para baixo e que hoje correria o risco de danos estruturais caso fosse corrigido; ou em Retrato de Marie Cézanne / Retrato de Madame Cézanne (1866-67), de Cézanne, uma rara tela de dupla face que inevitavelmente consigna um dos retratos a uma posição invertida.
Neste mundo às avessas, as lógicas gravitacionais que empurram as cerâmicas para o chão, suspendem Santa Barbara, ou permitem que o chumbo escape continuamente do gesto de Serra, são as mesmas forças que pressionam as galerias e as tornam vulneráveis a condições económicas que precipitam o seu encerramento. Em termos financeiros, o “telhado invertido” remete a um padrão gráfico no mercado de ações, cunhado por Thomas N. Bulkowski em 2005, semelhante à parte inferior de um diamante e interpretado como um sinal de recessão iminente. Contudo, no universo de Henke, este triângulo invertido converte-se simultaneamente num dialeto erótico, evocando elementos constituintes do corpo feminino. Os códigos latentes das subculturas do fetiche inscrevem-se na tensão das cordas que parecem deformar Unforced error, no tropo recorrente do cavalo enquanto figura de domínio e submissão.
Ainda assim, é necessário resistir a uma leitura puramente catastrófica. Tal como as cabeças que parecem emergir, é por vezes necessário resistir à incidência da gravidade e deturpar a sua lógica. Como nota Elizabeth Grosz, estar no exterior significa abrir-se à possibilidade de uma perspetiva que permita olhar para (...) dentro7. Como tal, a narrativa invertida de Henke demonstra que, apenas através da suspensão da estabilidade convencional, podem novas orientações de presença escultórica e figurativa ser articuladas.
Notas
1 Everything we choose in life for its lightness soon reveals its unbearable weight. Richard Serra, Writings, Interviews,
The University of Chicago Press, 1994: p.185.
2 Miwon Kwon, “One place after another: notes on site specificity”, October, vol. 80, 1997: p.85.
3 “Sculptural films” é um termo cunhado pelo historiador de arte Benjamin Buchloh no seu ensaio de 2000,
“Process sculpture and film in the work of Richard Serra”, publicado como um capítulo do livro Richard Serra, e
editado por Hal Foster. Buchloh empregou o termo para descrever os filmes de 16mm de Serra como explorações
da escultura enquanto processo e série de ações, em vez de um objeto acabado.
4 Cézanne au Jas de Bouffan, em exposição no Musée Granet.
5 Integrado no Museu Memorial do Holocausto, Estados Unidos.
6 L’informe é um conceito introduzido pela primeira vez pelo filósofo francês Georges Bataille no seu “Dicionário
Crítico”, publicado no periódico Documents em 1929. Em vez de oferecer uma definição fixa, o termo sugere aquilo
que Rosalind Krauss descreveu como “um processo de desvio”, capturando o espírito do meio artístico de Bataille,
no qual o Surrealismo procurava romper com a lógica e entrar no domínio da possibilidade inconsciente.
7 To be outside is to afford oneself the possibility of a perspective to look (…) inside. Elizabeth Grosz, Architecture from the outside: essays on virtual and real space, The Mit Press, 2001: p. xiv.