Para além do poder que tem como sendo a arte, a função da dança é escrever com o corpo o que linguagem alguma é capaz de traduzir em palavras.

Embora a Dança seja uma linguagem corporal, não está separada da mente, tampouco da emoção e do espírito, seu motor propulsor de gestos e afetos no espaço tempo, tanto da sua existência, quanto da sua manifestação. Na dança, o corpo e a subjetividade se confluem e fluem num contato humano com a criação.

Desde as sacerdotisas do período neolítico, a dança é parte de cerimoniais sagrados, colapsados aos deuses com caráter artístico, além do simbólico e cultural. Durante a Idade Média, contudo, momento opressor e discriminatório da humanidade, a dança é proibida pela Igreja, por entende-la como exaltação ao corpo, e por isso, era considerava profana e indigna. Já no Renascimento, a arte se desliga da Igreja, e aos poucos vai se desenvolvendo uma sociedade que aporta muito valor às artes. E surge a dança de corte, com movimentos definidos e coreografados no espaço, e também profissionais e mestres que estudavam as expressões do corpo e seu nível técnico na execução.

Assim, a Dança vem evoluindo ao longo dos séculos, passando por etapas diversas de construção pedagógica, acerca das disciplinas que lhe cabe, conceitos e questionamentos, sobre a forma de repassá-la, investigações corporais científicas e também fenomênicas, além de intercâmbios artísticos. Num conceito mais contemporâneo, a Dança é uma arte cênica dentre tantas linguagens irmanadas a ela, o teatro, a música, a literatura, a artesania, a performance e até a brincadeira! Seres brincantes são seres dançantes por natureza e ancestralidade. Viva o Cavalo Marinho, expressão cultural das raízes populares, dos Reisados, Caboclinhos, Maracatus, Mamulengueiros, Bumba meu boi, as manifestações cênicas populares brasileiras! Representações simbólicas de uma cultura material e imaterial, inclusive.

Através da arte, os seres humanos registram suas memórias nos fatos e acontecimentos importantes de sua época, em narrativas orais e representativas, suas histórias e cenas dramatizadas a partir da riqueza que essas linguagens subjetivas são capazes de prover, infinitos acervos, preservando sua cultura, bem como expressando visões de mundo, atingindo através dos sentidos físicos e supranaturais, o expectador da sua criação, aquele receptor que vai apreciar e testemunhar a sua obra. Um belo mosaico de subjetividades para fazê-lo sentir. E o aprendizado que vem junto com toda representatividade simbólica, certamente poderá ser, já é repassado, de geração a geração, nessa corrente de bens culturais ancestrais. A dança nossa de todos os dias não podemos deixá-la parada, tampouco fora das praças e escolas.

Dancem, Dancem, se não estaremos perdidos.

No livro da Dança muitas verdades estão escritas, muitas lições de vida, histórias vivas revividas no corpo, muitas orientações para aqueles que buscam no mover do corpo, um mecanismo sensível de expressar sentido na forma, sem precisar de nada falar. Estará tudo escrito no corpo, nos gestos sentidos, figurinos, adereços e cenários, nos sons do tempo e no espaço percorrido pelo movimento. O desafio do ser dançante, consiste em descobrir os caminhos originais que as figuras, os personagens, personas, performers, arquétipos manifestarão sua alma. Todos eles são passagem para campos sensoriais que contêm uma multidão de seres e informações preciosas para que a manifestação aconteça. Por isso que é arte, não é só de movimento que a dança é feita.

No livro da Dança em certos momentos, encontramos o remédio, o antídoto para as dificuldades mentais, emocionais, aquilo que está desregulado nos nossos sistemas fisiológicos corporais, muitas vezes, aquilo que não conseguimos expressar, que não foi possível ser dito, compreendido, superado por estes mecanismos mentais e ou emocionais! Mas a boa notícia é que a dança em nós, é especialista em ser capaz de expressar por si, tudo aquilo que está dentro e precisa sair já transformado. É a magia da dança! Tem também a filosofia, que aqui se diferencia, por ensinar a pensar com o corpo, antes que a mente tente explicar, para isto, pesquisas sensoriais, investigações corporais, construções metodológicas, práticas e técnicas de aprimoramento dessa arte essencial.

Além disso, no livro da dança encontramos o acolhimento de toda e qualquer emoção, sensação, impulsos internos e também externos, como fatores super importantes para sua manifestação, e por isso responsavelmente recebidos dentro de um espaço seguro onde podemos nos dividir em partes e sentir o todo. Um lugar onde podemos praticar o ser humano, sensível, tolo, alegre, estúpido, espiritual, sem nos sentirmos julgados, competitivos ou intimidados. Um lugar que fornecerá o ambiente, o contexto e a conjuntura ideais, para a história contada pelo sua corporeidade, querendo fazer alguma coisa com essa dor, esse amor, essa emoção, declaração, esse desabafo, essa força, esse cansaço, descompasso, além de serem elas próprias, o alimento para nossa alma expressar e nosso corpo dançar, transformando em arte o sofrimento ou contentamento.

Esta é a hora que a dança acontece, quando os gestos fluem no espaço a beleza do sentir.

Descobrir os tesouros que cada corpo traz na sua composição, textura, dinâmica, volume, clareza da forma, cientes das suas limitações, é desafiante e até extraordinário, pois que, é com a dança que ele, o corpo vai desenvolver eficiência através do movimento e flexibilidade nas couraças emocionais. A Dança cura, circula o inanimado para ser transformado, circula vida para curar feridas e tudo continuar em harmonia com o criador. Corporeidade é a volta aos sentidos para dançar a vida. Escutar o corpo é fascinante, dançar nos conecta com um carrossel de emoções, sensações, sentidos da existência. Dançar, sobretudo fortalece o músculo espiritual. A linguagem da Dança ao se comunicar é capaz de articular o que sobra. É a escuta do corpo, antes de falar para ele o que fazer, escutar o fluxo das informações...escutar um balanço sem precisar de música, escutar uma oração sem precisar sabe-la, Falar sem precisar nada dizer.

Os mestres de sabedoria antiga, os das artes da expressão, também falam das três portas que devemos cuidar, para melhor expressão do fogo interior, o espírito da dança. Abrimos três portas de contato quando dançamos: A porta do corpo - a oca (a casa) da alma, tecida pelas forças da natureza, como a árvore da vida, que hospeda boas e más energias. Percebam o desafio de ser passagem, bem como, o poder de transformação que a arte é capaz de gerir e executar.

Assim a cada dança, cada canção, cada poesia, cada pintura, adereço, ritmo, espaço, contextos executados em comunhão da obra com o observador, já não seremos mais os mesmos, nem dançarino nem expectador, porque ali, quando a arte acontece, ambos mudam de ponto, aqui caberia um conto a parte, contudo, o momento estará registrado no logos da criação. A porta da fala, sendo a passagem melódica do som do corpo, no corpo, do cosmos de dentro ou de fora, ou mesmo as palavras cantadas ou dramatizada gerarão a energia condutora do mover; o som inaudível que derruba muralhas; o som que também integra e expande luz. O som criador/criado.

No som do corpo, está presente o poder criado e criador, e por isso, se faz necessário conhecer e educar esta faculdade para melhor dispô-la na roda da vida.

E por fim, a porta da mente, que nos levará de um hemisfério a outro do cérebro, podendo criar subterfúgios para impedir os caminhos pouco percorridos, ainda desconhecidos da dança da vida. O lado direito e suas subjetividades, bem exploradas pelas artes essenciais. Portanto, não é devido limitar a dança, somente às técnicas específicas ou a corpos perfeitos, até porque, a perfeição por inteiro ainda estará por vir.

A função da dança está intrínseca na corporeidade. Ela é guia do mover, de integrar e articular em seus próprios corpos, os acessos antes despercebidos, por meio do fazer, da apreciação a arte, na sua genuína grandeza, e da sabedoria oculta que lhe acompanha, possibilitando assim, a expressão dos sentimentos e emoções, por meio das ações corporais movidas pelas histórias daqueles corpos, contextos, músicas, espaços. Na verdade, trata-se de reconhece-la não, pelo seu aspecto físico, mas sim pela sua essência vibratória que manifesta com gestos, sons e intentos, a dança que se expressa através do sentimento e das suas respectivas ações.