Ao examinarmos os títulos que Gülbin Ünlü tem vindo a escolher ao longo dos anos, rapidamente verificamos que nunca são incidentais. Cada um pode ser entendido como uma semente, plantando um pensamento que marca, com tranquilidade, a relação da artista com o seu trabalho. No seu conjunto, os títulos traçam os contornos de uma prática em movimento. Se os lermos atentamente, se os regarmos com os nossos próprios pensamentos, começarão a germinar de formas inesperadas.

Normal, o título da exposição na Jahn und Jahn, pode ser lido como uma espécie de provocação, levantando de imediato a questão: o que significa que algo seja normal? Será um aceno irónico à ideia de que os trabalhos expostos são representativos da prática da artista e, nesse sentido, “normais”? Ou uma reflexão crítica sobre a própria noção de normatividade? Ou simplesmente, uma palavra que se move com facilidade entre línguas – um título que nada reclama para além de ser uma palavra lançada ao ar, aberta a qualquer significado que venha colar-se a ela? Se é certo que, frequentemente, se espera dos artistas que respondam a este tipo de questões, eu prefiro conceder-lhes a liberdade de não o terem de fazer. Tanto as palavras como as obras de arte devem permanecer abertas – se o seu sentido fosse fixo, que espaço restaria para todas as nossas próprias impressões?

Aquilo que permeia a prática de Ünlü é, precisamente, a noção de fluxo. Numa conversa recente, disse-me que que tudo nas suas proximidades, ou seja, tudo o que se encontra no interior do atelier – mesmo peças que regressaram de uma exposição num museu – inevitavelmente se torna em material com o qual a artista continua a relacionar se. Algumas pinturas acumulam novas camadas; outras vêem-lhes retiradas camadas. Esta abordagem funda-se num entendimento de que o mundo que habitamos é moldado pelo movimento – por pessoas que têm de migrar de um lugar para outro, por linhas temporais que se sobrepõem e pelos enredos pessoais e políticos que emergem destas condições mutantes. Para qualquer artista que trabalhe primariamente no domínio da pintura, o movimento é fundamental: a velocidade e pressão da pincelada influencia directamente a intensidade da cor. No caso de Ünlü, a artista desenvolveu uma técnica pictórica que reflecte esse dinamismo, fundindo pintura e gravura, tela e glitter com óleo. Não há uma hierarquia de materiais, nem nenhum elemento de valor superior a outro. Numa veia semelhante, as suas obras tanto sobrevivem isoladas como funcionam como parte de uma constelação, retendo sempre o poder de se conseguirem libertar.

Em muitas das suas obras, Ünlü começa por compor imagens digitalmente – ou por traduzir colagens analógicas, desenho e pintura em forma digital. Deste arquivo crescente, selecciona fragmentos, imprime-os em película e transfere-os, ainda húmidos, para tela ou tecido. Aquilo que emerge nunca é definitivo: a superfície permanece um lugar de retorno, retrabalhado à mão – gesto a gesto – com o pincel. No seio desta exposição, esta técnica é particularmente evidente em três pinturas Transit: locked, Transit: unseen e Transit: unheard (todas de 2025), nas quais corpos indefinidos e brancos se movem através de interiores e paisagens ricamente coloridos: percorrem um caminho, permanecem junto à água, ou flutuam num barco. Compostas em registos horizontais distintos, as obras desdobram se como fragmentos de memória ou mito, em camadas. O esbatimento – resultado da intervenção de Ünlü sobre a superfície ainda fluida – empresta às imagens uma qualidade de assombro. As figuras não se movem simplesmente pelo espaço – reverberam no seu interior. Tal como cenas vislumbradas através de tecido ou de tempo, as imagens arrastam-se só por um instante antes de se dissolverem.

É neste estado de suspensão que o compromisso de Ünlü com o cinema e a música também se enraíza, aprofundando a ressonância que já está presente na superfície. Se algumas referências são evidentes nos próprios títulos – tais como Guilty feet have got no rhythm (2023), apropriado da canção Careless whisper, de George Michael, ou Don’t believe the hype it’s a sequel (2023), que ecoa a canção homónima dos Public Enemy – outros são menos explícitos. As obras de Ünlü funcionam como amostras (samples) visuais, fragmentos tirados de múltiplas fontes, arranjados em camadas e recombinados para formar algo de novo. Estas ideias tornam nítidas na série Silent running (2025), cujas pinturas individuais operam como habitats afectivos – fragmentos de um jardim especulativo, suspenso algures entre memória e vida depois da morte. A referência ao filme homónimo de 1972 não é literal, mas tonal: um eco cinemático do cuidado e persistência pós-antropocêntrica da vida em ecologias artificiais. No contexto da lógica da pintura, estes mundos resistem à resolução. Não oferecem qualquer centro, mas apenas camadas e a sugestão de uma presença vegetal que é só pressentida, não mostrada.

Esta lógica tem um seguimento arquitectónico na instalação karanlık ışık (2025), uma composição em camadas de tecidos que pode ser atravessada. Criada in situ para o espaço de projecto da galeria, convida os visitantes a atravessar limiares macios, transparentes, absorventes e reactivos. Cada camada se torna num ecrã, numa membrana, numa pausa. Sendo uma artista em profunda sintonia com as relações espaciais, não é surpreendente que este pensamento vá para além do espaço interior da galeria: o derradeiro de “normal” conduz ao jardim nas traseiras do edifício. O gesto é modesto, mas estende-se para lá do humano, Para os que passam (2025), constituindo um convite a todas as formas de vida que habitam o jardim: pessoas, animais, plantas. Trata-se de uma pequena abertura no tempo, mas é uma abertura que ecoa as estruturas em loop no âmago do trabalho de Ünlü –onde nada desaparece por completo e tudo regressa sob alguma forma.

(Texto de Carina Bukuts)