“Cuide bem de sua virgindade”, “sua virgindade é um presente que Deus te deu”, “uma menina casta é de boa família” e tantos outros exemplos de frases feitas e reproduzidas em todos os tipos de mídia, que durante décadas moldaram várias gerações e estigmatizaram o sexo e as relações sexuais como sendo pecaminosos e uma “dádiva sagrada” e não apenas como um instinto humano.

Mas porque essa estigmatização aconteceu? As principais causas são de fundo religioso, isso datado desde o império Romano e a adoção da religião católica pelo império como religião “oficial” ao invés das “religiões pagãs” que o império possuía. Com a queda do império, seguida pelas cruzadas e o surgimento da idade média e o crescimento da influência do poder da igreja, essa “demonização” sobre o ato sexual só se intensificou, principalmente em relação ao sexo feminino.

Com isso, obras literárias que surgiram durante essa época eram “vistoriadas” para que não atentassem contra “a moral e os bons costumes” perpetuados pela igreja católica. Como exemplo, podemos pegar diversas obras de Shakespeare que eram de certa forma “chocantes” para a época por irem, mesmo de forma tímida, contra certos preceitos da igreja, como por exemplo o casamento secreto e a consumação dele em Romeu & Julieta, a fala “feminista” de Emília em Otelo, basicamente dizendo que as mulheres também possuem desejos e a constante vilificação de personagens femininas por outros personagens masculinos, como Desdêmona em Otelo e Ofélia em Hamlet, sempre se referindo a elas com tons pejorativos e relacionados a relações sexuais.

Foi com a chegada do iluminismo que essa “demonização” foi de certa forma “diluída”, mas não completamente apagada, pois as obras literárias apesar de terem se tornado mais “progressivas”, ainda possuíam a mentalidade retrógrada sobre o sexo e os atos sexuais. Personagens mais “libertinas” não eram mais tratadas completamente como vilãs, mas ainda eram colocadas como “de menor valor” perante a personagens femininas que se valorizavam e eram castas até o casamento. Mesmo em Jane Austen, conhecida por suas protagonistas “feministas”, elas eram moças “de boa família e castas” e sempre acabavam casando com homens ricos e “de boa família”.

O período do século XVIII e XIX foi um dos períodos mais “progressivos” para a arte, com o surgimento de diversas novas vertentes literárias, na pintura e em todas as áreas culturais. Diversos autores começaram a escrever personagens mais realistas e menos “canonizados”. Machado de Assis é um dos maiores exemplos dessa “quebra” do sexo estigmatizado e da noção de que “mulher boa = mulher casta” em suas obras, com um dos maiores exemplos sendo Dom Casmurro e o eterno debate de “Capitu traiu ou não Bentinho?”.

Dando um salto bem grande para o século XX e o surgimento do cinema, temos pela primeira vez não apenas uma parte restrita da população (as pessoas de posse e letradas), mas a qualquer pessoa que quisesse, claro que com exceções, pois pessoas de classe mais inferior ou de lugares afastados dos centros urbanos continuavam não tendo acesso a essa cultura que começava a crescer e a surgir.

Contudo, mesmo com esse avanço todo de personagens retratados de forma mais “humana”, o tabu sobre o sexo continuava uma constante. O assunto ainda era abordado de forma inexistente e totalmente sutil, principalmente em relação ao sexo feminino, onde ele praticamente era visto como inexistente. As personagens mais “sexuais” eram sempre femme fatales sem caráter que manipulavam as pessoas e os homens, enquanto a heroína continuava uma moça casta e “boa”, por se valorizar.

Os EUA, se tornando a maior indústria cinematográfica do mundo na época, teve um grande papel na forma de “moldar” a visão e a mente das gerações. Os anos 1940, 1950 e 1960 foram décadas decisivas para isso. Os anos 1940 em meio a segunda guerra mundial e a uma mudança global, os anos 1950 com a reestruturação pós-guerra e o surgimento da televisão e os anos 1960 com a contra cultura aos valores moralistas e retrógrados surgidos nos anos 1950, com ideias como amor livre, luta contra o sistema e liberdade de expressão.

Os anos 1970 foram de certa forma a década mais “progressa” do século XX, com o surgimento de programas com mais liberdade sexual, mulheres vestidas de forma menos “casta”, minorias aparecendo em seriados de televisão e programas e a própria indústria musical da época era dominada pela era Disco e os cantores negros e as artistas mulheres.

Entretanto, como já abordado em outro texto meu, os anos 1980 e a “era Regan” trouxeram à tona todo o conservadorismo que existia, os seriados voltaram as “bad girls” em contraste com as “mocinhas”, o tabu sobre o sexo tinha voltado com força total e, mesmo que assuntos espinhosos fossem abordados, como aborto, gravidez e sexo, eram sempre resolvidos pelo viés conservador, como por exemplo, se uma personagem tivesse engravidado e estivesse em dúvida sobre fazer um aborto ou não, em praticamente 100% dos casos ela continuaria com a gravidez e, se não fosse o caso, ela acabaria tendo um aborto espontâneo e sofrendo por “ter perdido uma vida”.

Não apenas isso, mas nas décadas de 1980, 1990 e nas duas primeiras décadas dos anos 2000, a mídia fazia o que pode ser chamado de “progressismo falso”, como por exemplo:

  • Se o tema era aborto, como comentado, a personagem no fim decidiria ter o bebê e ficaria se repreendendo por ter sequer cogitado fazer um aborto.

  • Uma personagem progressista que só pensa em trabalho acaba descobrindo que a maior dádiva da vida não é focar só em trabalhar, mas em achar um homem para se casar e ter filhos.

  • Uma personagem diz que não quer ser mãe, acaba engravidando acidentalmente o que a leva para o primeiro exemplo (do tema do aborto) e no final acaba mudando de ideia e querendo ser mãe.

  • Uma personagem não quer saber de ter um relacionamento e sente que sua vida é incompleta, a solução? Achar um homem, se casar e ter filhos.

  • Uma mulher que gosta de transar acaba conhecendo um homem, se apaixonando e vendo o “erro” do seu comportamento libertino.

E esses são apenas alguns dos diversos exemplos sobre essa falsa equivalência de progressismo dos filmes e seriados da época. Além disso, as personagens femininas eram constantemente punidas por fazerem sexo, como por exemplo, gravidez indesejada, DSTs, descobrir que o cara que ela dormiu era “uma pessoa ruim”, tentativas de estupro (e até mesmo estupro) e/ ou eram constantemente envergonhadas por serem sexualmente ativas, esse último exemplo é visto muito principalmente em seriados voltados para o público jovem.

Aliás, os seriados jovens foram os mais “prejudiciais” a essa estigmatização sobre o amor e sexo. Não eram incomuns ideias que associavam o sexo ao romance e ao amor, triângulos amorosos entre “a personagem recatada e a mais libertina”, humilhações por uma personagem “transar com qualquer um”, culpabilização de uma personagem estuprada, as vezes até sendo acusada de “ter dado motivos” para o estuprador.

Esse último exemplo aliás era quase constante, com a personagem sendo humilhada, acusada de ter dado motivos ou estar mentindo e aconteciam de duas formas:

  • Se era a personagem “casta” era tratado como um crime e a história lidava com o caso de forma criminosa e a personagem era vítima, o culpado era preso e ela ia passar por um crescimento através dos traumas do ocorrido.

  • Se fosse a personagem mais “libertina” ela seria tratada de forma dúbia com “será que ela está mentindo?”, acusariam ela de dar motivos para o estuprador, o estuprador não seria tratado como criminoso e o caso teria contornos de “de certa forma pode ser considerado estupro, mas como ela não sofreu violência vamos deixar no ar se foi ou não”.

Aliás, nessa segunda forma eram clássicos os casos de “ela se arrependeu, mas fez consentindo”; “ela começou querendo, mas mudou de ideia no meio contudo continuou a transa”; “ela se meteu com um cara que não tinha boa reputação” e depois de todos esses casos era praticamente de praxe a personagem “rever os seus erros e a sua forma de agir” e se o estuprador, se fosse parte do elenco e um dos personagens “bons”, era redimido pelo seu “erro”. O seriado Dynasty (1981) era um dos maiores exemplos dessa mentalidade da época com diversas personagens sofrendo estupros por outros personagens e em seguida “os perdoando”, a personagem de Joan Collins sendo retratada como manipuladora, maquiavélica e sexualmente libertina em contraste com a personagem de Linda Evans que era boa, recatada e fiel ao seu marido.

O seriado Beverly Hills 90210 (Barrados no Baile no Brasil) fez os absurdos de:

  • Livrar um personagem da acusação de estupro porque a mulher com quem ele transou “apenas se arrependeu de dormir com ele” e depois ela se mostrou mentalmente instável.

  • A “vilã” do seriado sofre estupro por conta de um “boa noite cinderela” e tirando o seu namorado, todos os outros personagens dizem que ela está mentindo e defendem o personagem que a estuprou, com o absurdo de no final ela “perdoar” o estuprador porque ele também havia sido uma “vítima”, pois não havia sido ele que tinha colocado a droga na bebida dela, mas sim outro personagem.

  • Outro personagem ser “inocentado” por ter transado com uma menor de idade, pois a culpa era dela, pois ela havia consentido, mas tinha mentido a idade para ele.

Não apenas lá fora, mas mesmo nas novelas no Brasil era constante colocar como traço das vilãs o gosto pelo sexo, por roupas provocantes e por terem a “audácia” de separarem o amor do sexo, como duas coisas distintas. Além disso, elas também usavam o sexo como uma forma de manipular e “enganar” os homens. Não que isso não fosse usado antes, mas durante os anos 1980 até mais ou menos meados do meio da década de 10 dos anos 2000, essa estigmatização era tão grande que a novela Tieta sofreu grandes controvérsias por conta de sua protagonista.

Infelizmente hoje em dia, mesmo após tantas coisas terem evoluído de certa forma, o sexo continua sendo estigmatizado nas mídias e pior, surgiu uma contracultura a essa estigmatização que ao invés de ajudar a acabar com essa estigmatização ela está apenas a reforçando. Clipes sexualmente explícitos demais, a banalização do sexo (banalização no sentido de até o uso de camisinhas e de métodos contraceptivos não serem levados com a seriedade que devem), desinformações sobre educação sexual, a banalização sobre as pessoas trans, banalização sobre os gays e as lésbicas e a até mesmo artistas, celebridades e subcelebridades se dizendo bissexuais apenas para surfar na onda.

Não há uma solução simples para esse problema, aliás se a própria sociedade não se perguntar “o que aconteceu?” isso nunca vai acabar. Fazer seriados, novelas e filmes “progressistas” sem serem progressistas não ajuda em nada, assim como o contrário, o hipersexualismo e a banalização do sexo não está ajudando ninguém, muito pelo contrário, está mais prejudicando do que ajudando.

A pergunta que fica é “como a Grécia antiga, menos “evoluída” do que nós consegue ter uma visão muito pais progressista sobre o amor e o sexo?”. Ou as pessoas focam em responder essa pergunta, ou não vai adiantar nada a televisão ficar reproduzindo a militância rasa de internet e sem o menor embasamento. Como a tia Vivian diz no seriado The Fresh Prince of Bel-Air, no episódio The Ethnic Tip:

Se você não conhecer a história, toda a história, você só estará prejudicando a causa.