Ela, em toda sua bela sutileza, recobre-se num instante, com uma cúpula de reconstrução.

Nascia lindo o dia, tanto da chegada quanto da partida, em todos os sentidos, em todos os tempos da existência da Tribo Real da Ordem. Desde o fim da idade de bronze, de geração em geração, circulam pelo planeta Terra, evoluindo e fazendo evoluir seus princípios e valores, agora mais que humanos, necessariamente. Na origem, a tribo surgiu como inspiração para oferecer à Divindade a possibilidade de que, na Terra, existam agrupamentos de Guias para ensinar a grupos de pessoas autoconvocadas, arquétipos de conduta que expressem uma vida evolutiva Maior. Assim é.

Ao longe já se via as muralhas de pedras rosadas do castelo no Porto, onde Alice nasceu quase um século à frente de Aisha, a cigana matriarca da Tribo Real, avó de Omar, pai de Alice. Aisha não chegou a ver a menina nascer, entretanto, com sangue cigano, a menina traz para a vida memórias vividas e saudades latentes do porvir. Entre aspirações magnéticas e devaneios espirituais, faz-se a comunicação entre seus corações e consciências brilhantes, desde sempre.

Anciã e Menina, concebidas na alquímica combinação dos elementos da natureza, trazendo à criação, de ventre em ventre, a estrela da coragem no coração, essa capacidade de emanar toda vida de sabedoria e esperança, unidade na fraternidade e igualdade no existir. Na linha da existência, isto não terá importância. Apenas entre, é no coração. É bem chegada a hora do importante encontro sem tempo, entre bisavó e bisneta, onde a ancestralidade no sangue de ambas precisa atuar, resgatar a essência da sua própria natureza, e libertar a coragem no coração da menina, agora mulher maior de idade, irá receber a estrela no coração.

Madrugada do aniversário de Alice, filha mais velha do casamento inusitado entre Omar, o cigano mouro, e Carolina, a fidalga germânica, a gravidez, fruto dos encontros de verão, entre os dois, naqueles dias festivos de peregrinação da Tribo Real em Portugal. Omar e Carolina, pais de Alice, agora desgarrados de suas origens, fazem morada no Porto para o nascimento da primogênita do casal, fora da lei ancestral. Em sua tradição, ciganos casam com ciganas. Carolina morreu no parto, e Alice foi criada por Omar e subalternos no castelo de heranças maternas.

Aisha em tempos já vividos, foi matriarca da tribo onde nasceu e cresceu o pai da menina, o cigano. De origem moura, Omar significa longa vida, e Aisha quer dizer, aquela que está viva. O coração de Alice, desde pequenina, palpitava a certeza da alegria, ao sentir todo dia, a chegada e partida, leve e colorida de Aisha, bem de perto, quase dentro, desperta e lúcida sussurrando-lhe ao ouvido:

—Ainda estou aqui por este momento, voltei neste rito de passagem para lançar sobre ti o pó do pássaro da alma. É o brilho de estrela que fará pulsar no seu coração, a vitalidade rosa-vermelha do amor na terra! Com asas abertas e aroma de espírito livre e universal, é chegado o tempo de subir a grande volta da espiral. O retorno à fonte, onde descobrimos que a Natureza é a nossa Mãe, e o teto do universo, nosso Pai. Peregrinamos de um para o outro, vivendo a aventura da vida em suas diversas dimensões do existir. Mãe e Pai. O sentido da responsabilidade chamando-a à capacidade de fluir por entre as situações da vida, acompanhando naturalmente as mudanças de cada estação. Natureza é Guia.

—Presuponha minha menina, que estarás em consonância com os ritmos da própria natureza, com o claro propósito de ordem, crescendo em entendimento e viva em harmonia, assumindo a responsabilidade pelas três faces do destino: O passado, o Presente e o Futuro. Aqui e Agora. O Tempo Real é Guia, a Eternidade indo e vindo, infinda. Essa capacidade de fluir às faces do destino, isto é, de trilhar o caminho suavemente, honrando todo ser, espaço, e formas sagradas da vida. Conservar o brilho das estrelas nos olhos e no coração, gerará gratidão por cada ensinamento que a vida lhe conceda, ainda que pareçam tombos. Coração é Guia.

—Mãe que sou, eu lhes abençoo. Compreendendo o Presente, acessarás a habilidade de criar o futuro. Cada pensamento, cada ação manifestada no aqui e agora, influenciará diretamente nos próximos momentos da vida em ti, nós e na humanidade. Então, veja:

—É chegada a hora de experimentar levantar acampamento e peregrinar para dentro das suas possibilidades de existir. Vem, vivendo em bando, o poder da criação é maior. Honre a Natureza em seus mistérios e magnitude e, sobretudo, carregue em teu manto as sementes da igualdade, liberdade e fraternidade. Nesta nova era que te concebe, não haverá mais espaço para a opressão, violência, escravidão. Do contrário, ameaças e perseguições serão extinguidas das células femininas. Estas memórias, serão apagadas da nossa história.

—Medo, insegurança, escassez deixaram de fazer parte do seu contexto. Ainda que cheia de bens materiais, perceberás que nesta dimensão, onde estou agora, a matéria, tão necessária antes, é de nenhum valor depois. A estrela do amor sim, deve permanecer brilhando incandescente no seu coração materno, feminino por natureza, e o poder criador, magneto do sentir, já é parte de mim em ti.

—Ymã, magneto do amor, este será seu nome nômade, soprado em seus ouvidos pela matriarca e patriarca que irão te receber. Você será batizada na Ônix, tribo real dos tempos futuros que ainda virão. Tempos de união e compaixão, liberdade e igualdade. Tempo de ser humano, e não de apenas estar.

Embora Alice soubesse da bisavó, era pouco e muito, um tanto atemporal e inquantificável, mas, no decorrer da sua existência até aqui, carregava alegre em seu coração, a certeza de tê-la ancestral na sua trajetória, marcada sobretudo durante sua engenhosa libertação para além das muralhas de pedras, onde Alice nasceu e vivia aprisionada à fidalguia. Nos últimos dias da semana de aniversário, a velha andava presente nos sonhos e pensamentos fugidios da menina-mulher. Aquela vontade íntima de escutar o coração, sussurros da liberdade, de viver numa grande família, em meio à natureza, sob o teto do universo, entre aprendizados e mistérios, assim como Aisha e Omar viveram, até Carolina, a fidalga austríaca chegar, para Alice existir.

Não por acaso, Carolina quer dizer, mulher livre, do povo, forte, elegante, determinada. Sua Mãe já antes nômade na roda da vida.

Entre Aisha e Alice

—Querida Alice, atendendo ao chamado ainda inconsciente da sua alma peregrina, venho a ter com você, a partilha dessa experiência. É hora de vencer as muralhas que te aprisionam a cabeça, mãos e coração. Me foi dada missão de orientá-la nesta fase de transição, disse a velha cigana à menina que acabara de completar maior idade.

—Eu sou aquela nossa parte, que cria, que vibra a natureza liberta de ser, essencial, a parte mais pura e genuína de uma semente menina, integrada à sabedoria anciã de todos os reinos, aquela que é terra, que ara, que semeia, cultiva sementes, planta, colhe, alimenta, que cuida, cura, e partilha com a divindade, toda forma de servir. Consonante com o fluxo da vida e as estações da natureza, deverás seguir.

—És tu, aquela parte nascente, água de rio fluindo para o mar, contornando obstáculos, hidratando texturas, preenchendo espaços vazios do caminho, aquela que flui a concepção, e dará luz a outro ser. Também, somos céu, de astros e estrelas brilhantes e inteligentes, céu que inspira, sonha, intui, sinaliza, comunica sem falar, sou agora feita de vento, que traz chuva e renova ar, enquanto seguimos por entre as trilhas, bosques e tempestades do nosso existir. O fogo do chamado não poderemos deixar de ser, afinal está dito, a chama dessa fogueira, devemos manter acesa.

—Importante saber que deixei para trás, aquela parte que viveu as mazelas, incompreensões humanas, violentas e opressoras manobras da política e realeza, dos castelos e palácios dos poderes mundiais, deturpados por sistemas mortais, imorais e desiguais. Com a força do amor, estrela que brilha e chama, sou sobretudo, aquela nossa parte que soube resgatar a essência, à família originária da Ônix, tribo real da ordem negra, nossa comuna, para onde estás prestes a seguir. Apronte-se, partiremos sob a lua cheia, logo após seu renascimento.

Alice, a filha mais velha de Omar, o cigano, era muito diferente das mais jovens, muito menos ciganas, excessivamente fidalgas, como a família de Carolina, rígidas em suas crenças e costumes de vida, muito presas na matéria, meninas-mulheres com suas águas criativas represadas. Às vinte e duas horas, toda gente do castelo já estava recolhida; quando os candeeiros se apagaram, Alice partiu na companhia de Aisha, aquela que está viva, mulheres em busca da liberdade latente e acolhimento igualitário de sua gente. Fez-se o silêncio. Alice só conseguia sentir, o que nem ela sabia, mas o quanto aquele reencontro lhes era deveras especial sim! Sua bisa estava viva dentro dela!

A transição

—Ymã! - estou aqui para te direcionar a coragem do caminho, seguiremos rumo a Valência, onde a tribo real estará aguardando a sua chegada. Naquela noite de primaveras de Alice, a fuga acontecia, e a nova vida, livre e nômade de Ymã agora se inicia, ainda que apenas dentro dela?

Alice saiu do quarto, atravessou o corredor ao encontro de Aisha que lhe aguardava com candeeiro aceso, cesta de alimentos, ervas secas e água na trouxa de tecido pendurada. Era tudo etérico na visão de Alice, como no lírico mundo dos fenômenos, sabe? Embora isto não queira dizer que seja menos real que a materialidade das coisas. A vida onírica e ancestral acontecendo na realidade fora do tempo.

Quando Alice acordou estava nos braços da criança que brincava as margens do rio. Alice agora será Ymã e já está no acampamento da tribo real. Durante a experiência vivida nesta segunda parte da sua vida, a bisneta daquela que está viva, vibra espírito livre, nômade, cigana por natureza. Tanto ela, quanto Ymã, Eu e Você, antes ou agora, na ciência das nossas criações, acessamos os mistérios da vida universal, vividas no corpo em tempos distintos.

—Partimos livres, em busca do autoconhecer, porque já não nos bastamos numa vida que perdeu o sentido. Então vamos Alice, disse a velha: Não permita engendrar-se na rede das ilusões humanas que aprisionam cabeça, mãos e coração. Há tanta vida aí dentro de você, e fora também! O fenômeno da mudança permanecerá imutável, dizia a velha cigana, quando vez ou outra voltava a encontrar com Ymã, a nômade, menina-mulher que Alice se tornara.

Na tribo real da Ordem, aprendeu a observar o fluir da natureza e a seguir com ela, a cada ciclo de morte e renascimento da sua própria história, ia experimentando o silêncio da introspecção, a fluidez nas emoções, iluminação nos pensamentos, e o florescimento dos seus dons e talentos, durante as estações. Entre uma e outra, ia sendo consagrada. 'Deixar de ser também é ser'. Assim estava escrito no estandarte de Ymã, onde seus sonhos dançam a realidade, com aroma de rosas vermelhas e reencontros de passagens. De outra forma, em outro ambiente, novas experiências e aprendizados infindos, no fluir confiante da vida na vida.

Contactada com a Arte, a Alquimia e a Espiritualidade desse povo ancestral, Ymã cigana vai reunindo os elementos necessários às mudanças em tempos de peregrinação. Para dentro ou para fora de nós, com corpo ou sem corpo, intercambiamos nossas virtudes e dons, independente de onde cada qual se encontra agora. A tribo da ordem, há vidas, vai apontando aos peregrinos, durante a vivência dos seus próprios destinos, a direção do serviço a ser prestado aos reinos, e unidas ao planeta água, fazemos mais que o suficiente para caminharmos integradas com nossas mãos, mentes e corações disponíveis à criação. Em tempos de adversidades e desencontros humanitários, mantemos essa chama acesa.

Dia do batismo cigano

Meses se passaram desde a sua chegada na tribo. Logo cedo, no raiar do sol, ainda na tenda, Alice, quase Ymã, recebe a visita de Camila, a criança que lhe abraçou quando chegou. A mando da matriarca madrinha, trazia escritura ilustrada, que dizia o seguinte:

—Você deve saber que a nossa resistência, palavra de força feminina, por infinitas vezes, conseguiu sobreviver à opressão das perseguições, à dominação das leis humanas, sem tanto sentido, ao poder capital, seja ele cultural ou político. Mas o que é resistir? Resistência é o ato que nos mantém convictas, perante as leis da natureza, Fortes, vigorosas e esperançosas no porvir, precisamos resistir e resistimos! Coragem e Coração, dão as mãos, estando a Serviço da Criação. Comprometidas em partilhar da liberdade criativa dos ensinamentos universais, resistimos ao tempo e permaneceremos na eternidade.

—As nossas maneiras de acolher e cuidar, nossos Ritos e Rodas, abordam o conhecimento e a união dos corpos e seus temperamentos.

—Somos criativas, livres e movidas por Natureza e Alegria, em nossa maioria. Apesar das dificuldades e obstáculos do caminho, permanecemos vivas e espalhadas pelo planeta.

—Tradicionais ou Intencionais, circulam em nosso sangue substâncias ciganas, rastros de cores e sons, perfumes de sabores e saberes, folhas de outono, águas de verão.

—Nossa dança, dilui tristeza e fortalece o propósito, chaves adquiridas com o tempo, de inúmeras andanças, idas e vindas da morte à vida, da vida à morte. Jamais esqueça: A criatividade é Guia da ciência da criação.

—Cozinhar é alquimia, e alimentos são medicamentos. De Elementos e Elementais, vamos vivendo em união com a grande magia da vida.

—Ritualizamos nossas ações entre as 4 estações: Semeamos, Dançamos, Cantamos, Silenciamos, Contemplamos, Contactamos o invisível.

—Criamos e Celebramos nosso viver, gratas e inspiradas a resistir, tanto nos fins como nos novos começos.

Com as chaves luminosas da nossa ancestralidade, com as águas sagradas de Santa Sara, eu lhe batizo Ymã, aquela que atrai as respostas e sinais do coração, cabeça e mãos. De posse da Ônix negra, cristal de proteção e poderes ocultos, faça bom uso de seus encantos, curas e alquimias. E do poder da sua atração, receba o fio de vida deste conto, para que cada conta presente aqui, resista às adversidades da vida!

—Precisarás passar adiante todo esse amor-sabedoria que dará fim à violência, opressão, perseguição ou qualquer infração das leis naturais do novo viver. Em agradável silêncio, no puro amor deste laço vermelho, agradeço a oportunidade desse encontro repleto de almas afins, memórias de coragem e solidariedade. Acreditamos nelas como sendo princípios que regem nossas vidas e as tornam sagradas. E Rosa, madrinha, finalizou: Confio em ti.