—Sonhei com uma menina chamada Cominda. Dizia-me que os pescadores estavam a chegar — o sonho ainda me colava à pele.
—Mas onde estavas? — perguntou a minha companheira.
—Estava aqui, no Bazaruto. Ela aproximou-se de mim e pediu-me comida.
—A Cominda... que vivia pedindo comida. Bonito.
Alguém ao nosso lado pediu desculpa por se intrometer:
—Viu a Cominda? E sabe quem ela é?
—Não sei quem era, mas pareceu-me familiar. Estava triste.
—A Cominda é uma menina mulher que vive na praia. Só aparece a quem reconhece um amor verdadeiro. A minha companheira apertou-me a mão e sorriu-me com cumplicidade:
—Se me permitem… fechem os olhos. A história não começou hoje. Começou há muito tempo, quando o mar ainda sussurrava nomes…
Cominda era uma mulher muito bonita, de pele morena, os cabelos de sal, mas, no seu âmago, vivia uma escura tristeza (ela olhava-me esbugalhado como se soubesse que o sonho ainda vivia em mim).
Há muito tempo, Cominda era uma habitante de uma vila piscatória.
O seu homem era pescador, mais conhecido como o Pedro Maningue, o nome do seu barco.
Todas as noites em que Pedro ia para o mar, despediam-se com um beijo luminoso. Era o beijo da protecção, da razão, da esperança. Os dois olhavam-se por duas luas cúmplices como as luzes que se avistam os pescadores no horizonte. Entreolhavam-se durante toda a ausência sem nunca se perderem de vista (apontava-nos o farol que se avistava da costa).
Pedro voltava todas as manhãs nos primeiros raios de sol e sabia que Cominda o esperava na praia. Era ela que avisava a vila que os pescadores estavam de volta e, assim, começavam os preparativos para a festa com mandioca, xima e matapa. O peixe era responsabilidade de Maningue e dos seus tripulantes.
Cominda, um dia, foi com o Pedro no seu barco. Visitaram o recife (conseguíamos ver no mar alto uma rebentação de ondas que delimitavam o recife) e passaram a noite juntos num amor embalado pelas ondas. Os peixes também tinham de descansar, dizia Pedro.
Na maré baixa, surgia um ilhéu pequeno, um banco de areia que se mostrava como uma cama para os dois. Pedro atracou o seu barco ao recife e caminharam juntos com a água pelos pés. As águas brilhavam a cada pegada como se a magia os seguisse. Luzes pequenas cercavam o seu abraço, como se o amor fosse água pertencente ao mar. Cominda olhava-o com os seus olhos brilhantes, apaixonados. – São as luzes do mar, minha Cominda. Só elas sabem o quanto amor vive em mim. (A minha companheira encosta-se ao meu ombro, enxugava as lágrimas discretamente).
Pedro era forte, de pele queimada pelo sol e pelo sal, Cominda era suave, de pele hidratada pelo óleo de coco. Os dois misturaram-se naquela cama de areia, num céu laranja. Namoraram-se com beijos apaixonados. Os dois, num só corpo, rendidos ao desejo. Com as poucas palavras entoadas, os seus olhos conversavam tudo o que lhes nascia no seu interior. Uma maré de sentimentos transbordava nos seus corpos. Viam-se por dentro, num silêncio carregado de promessas.
Deixaram-se adormecer ao som estrelado.
As luzes reflectiam-se num mar que se escurecia com a noite.
Quando acordaram, a maré tinha subido. O Maningue estava longe e não conseguiam andar ao encontro do barco. Cominda assustada, olhava para a costa longe, um mar mexido, não sabia nadar. Os olhos dela nos olhos dele, lacrimejando gotas de medo. Pedro tranquilizou-a no seu abraço de braços fortes e pele escura. Os seus lábios tocaram no canto entre o pescoço e o ombro, a pele dele salgada. Um cheiro de mar misturado com o seu. Ali, na ilha, uniram-se para sempre. Cominda beijou-o, os lábios fartos molhados encheram Pedro de coragem. A sua boca doce era uma onda crescente de arrepio que subia espinha acima.
Pedro saltou para o mar num mergulho perfeito, nadava como peixe. Nadou contra a maré atravessando a rebentação até chegar ao Maningue. Subiu, içou a âncora e remou de volta à cama de areia que mingava rapidamente onde Cominda o esperava. Nesse momento, a água rodeava-lhe os pés, todo o ilhéu submerso. Apenas o suficiente para Cominda não afundar. A própria minúscula ilha aguardava pelo Maningue. Pedro chegou, puxou-a numa braçada e sentou-a na proa; remava enquanto a observava ainda recuperando do susto. Ela ofegava, os seus olhos presos na ilha agora desaparecida. O segredo deles submerso.
A viagem era curta, mais curta ainda com a boleia das ondas. Chegaram a terra rapidamente. Cominda ainda tremia de medo, mas confiava plena no seu homem, nas suas promessas deixadas debaixo de água. Pedro, agarrou-lhe a mão, a mão dela dentro da dele; olharam-se prolongadamente e disse: O nosso amor resiste, é o recife que nos protege dentro das nossas águas. Não tenhas medo, meu amor. Serás sempre o meu chão (era eu que segurava a emoção que sentia, apertei a mão da minha companheira e sussurrei estas mesmas palavras: tu és o meu chão).
Após essa noite, Cominda, engravidara. Quando se despediu de Pedro no seu beijo de farol, sussurrou-lhe ao ouvido: Estou de olho, volta rápido porque eu guardo uma surpresa em mim. Pedro sorriu de corpo inteiro, perplexo, não conseguiu expressar palavra alguma. Beijou-a com os olhos em lágrimas e remou para lá do recife. Cominda via-o cada vez mais pequeno, sobrando apenas a pequena luz que se mantinham ligados.
Nessa noite, mais tarde, o tempo mudou, o vento trocou a direcção e as nuvens surgiram nas rajadas tempestuosas. Cominda levantou-se e não conseguia ver as luzes do Maningue, os olhos de Pedro. A areia levantava e feria a pele dela, as árvores balançavam ébrias, o vento assobiava forte, a maré controversa, numa discussão de correntes. Abrigando-se numa das encostas, um nevoeiro caiu ao nível do mar. Nada se ouvia a não ser o rugir do vento, nada se via para além de um movimento denso e branco.
Quando enfim a tempestade deu tréguas, o sol do nascer do dia vencia a nebulosidade, e o mar cansado dormia, sereno, Cominda levantou-se devagar, sacudindo a areia do seu corpo. Os olhos postos no horizonte: um mar vazio (sem conter as lágrimas, também nós procurávamos por Pedro).
Esperou a manhã inteira. A tarde. Os dias.
Vivia rondando a praia à espera de um sinal. De uma luz.
Do farol. Do olhar de Pedro. Nunca mais o viu.
Perdeu-o no horizonte, perdeu a lucidez, perdeu-se.
Cominda, desaparecia a pouco e pouco.
Tentaram trazê-la de volta à vila, mas ela murmurava, cabisbaixa:
— Morreu, morreu, ... morreu...
As suas lágrimas ao caírem na areia, a maré recuava. Cominda chorava como quem amaldiçoa o mar.
Estava fraca, desnutrida, agarrada à barriga: o único resto do seu amor.
Encarou o mar, avançando; a cada passo o mar recuava mais, rendido pela dor. Andou até encontrar o recife, o ilhéu nu disposto para ela. Deitando-se sobre a areia, ainda fresca do mar, chorou tudo.
Ali, deu à luz esta duna.
O sol abriu, a maré, lentamente, recuperava o seu ritmo, as ondas acarinhavam a areia como se pedissem perdão.
Este chão que pisamos é Cominda. A duna, a ilha. Pedro, o recife.
Assim nasceu Bazaruto, filha da ilha e do mar — em terra, o amor materno. No recife a abundância do seu pai e do seu barco, o Maningue.
—É uma bonita lenda — disse a minha companheira.
—Não é uma lenda. É uma ilha sagrada. Aqui, o amor não morre — transforma-se em chão, em recife, na duna.
Eu sorri, gosto de quem acredita no impossível. Olhei em volta, numa inspiração profunda ouvi o som do amor que desaguava na duna. A cada pequena onda, um “estou aqui” prolongado; molhando a areia que a seguia a cada retorno.
—É raro receber uma visita dela. Vem sempre como menina, leve como a brisa, mas Cominda é uma mulher que nos inspira.