Na busca intensificada de compreender a complexidade dos sistemas vivos que contemplam a expansão do universo pela realidade através de senha para qualquer acesso, encontramos no esplendor do imaginário, razões para continuarmos os estudos do folclore e do patrimônio imaterial da nossa região.
Por sua vez, as formas vigentes de energias existentes nas culturas populares perpassam pelo tempo da criação. Sua dinâmica é sua força! Há uma trama física, há uma energia moroncial durante sua manifestação que não está nem no material nem no espiritual. Moroncial é entendido segundo o Livro de Urântia, nem na terra, nem no céu, seria o imaginário que contempla o tempo inqualificável, que transborda e faz do folclore um lugar de deidade, onde pode-se afirmar, que o patrimônio imaterial se alimenta de todo nível absonito existentes nas culturas populares, onde não podemos encontrar o seu começo nem o seu fim.
Toda essa beleza, faz parte da cultura popular, do folclore que deriva do tempo e do espaço onde liberta os parâmetros acadêmicos com novos imaginários e constroi novos caminhos. Mesmo porque, os apaixonados pelos costumes e manifestações de um povo, os grandes colecionadores, traziam em seu imaginário o gosto pela observação, eram guiados pelas metodologias, como a etnografia.
Digamos que o folclore, teve como parâmetro, o exótico, o bizarro, que afinou o tempo e o espaço na justificativa para compreensão de um passado, passado. Nessa escalada da cultura e do conhecimento, o folclore ou cultura popular, mesmo com toda sua conotação de algo que não serve mais, provoca os provocadores quando aborda algo que foi esquecido, ou desaparecido para dar lugar aos novos imaginários do século XXI, onde há senha para qualquer acesso, num tempo onde o virtual carimba a realidade. Tudo isso é para entendermos que falar de cultura popular ou folclore é bastante complexo.
Essa complexidade necessita de constante aprofundamento. Onde os sensíveis insanos, os chamados folcloristas, ainda vão em busca de registrar esse sistemas vivos do folclore ou cultura popular para exibirem estudos de um processo civilizatório entre a centelha do divino e as trapaças do cotidiano. Porque como está no livro, A Invisível cor da história, “ A arte é a única arma que a morte respeita.” Afirma Néstor García Canclini.
[...] todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros. Assim, as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento.
(Canclini, 1997,p. 283-350)
Pois bem, se perguntarmos nas culturas populares o sentido de patrimônio, iremos perceber a esfera espiritual e material, quando elas afirmam que são os seus bens materiais, como sua casa, e sua família. A família ainda é a base na compreensão da dinâmica das culturas populares. Essa dinâmica perpassa pelo ritual, pela constante busca da devoção. A devoção está presente na comunidade.
Segundo Bauman a comunidade é o aconchegante coletivo. Devoção é uma característica que não podemos deixar de ressaltar nos estudos do folclore e do patrimônio imaterial. Há de se considerar que devemos observar que a devoção vai nortear os estudos das culturas populares pelo sentimento. Isso implica a compreensão de envolver o social sempre num passado, o que devemos trazer para o presente as experiências que estão ligadas ao imaginário produzindo uma realidade sentimental que não é fixa.
Então, entendemos a devoção como modo de se relacionar com o real que exibe ressonâncias utilizando táticas para se apropriar da leitura do mundo. Modo também para entendermos o sagrado. Para Eliade Mircea, o sagrado é tudo aquilo experienciado com sentido, realidade e verdade. Em suas palavras, o sagrado, ao invés de ser um estágio na história da consciência humana – como pretenderam algumas ciências contemporâneas –, é “um elemento na estrutura da consciência” (Eliade, 2001, p. 24). Essa estrutura da consciência e do sentimento traz os dons secretos da nossa existência como dizia o escritor argentino Jorge Luiz Borges, “... Melhor é aceitar com humildade esses dons secretos”.
Os secretos dons do sagrado revelam a mobilização da devoção. O filósofo e sociólogo francês Lévy-Bruhl afirmava que “o pensamento destes povos está imbuído de misticismo e não é governado exclusivamente pelas leis da lógica…”Há uma lógica que impera nas culturas populares. No livro Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional de E.P. Thompson diz que, “ Nos séculos precedentes, o termo ‘costume’ foi empregado para denotar boa parte do que hoje está implicado na palavra ‘cultura’. O costume era a ‘segunda natureza’ do homem.
Francis Bacon escreveu sobre o costume como a conduta inercial, habitual,e induzida. Os homens professam, protestam, comprometem-se, pronunciam grandes palavras, para depois fazer o que sempre fizeram. Como se fossem imagens mortas instrumentos movidos exclusivamente pelas rodas do costume. Para Bacon, portanto, o problema consistia em induzir melhores hábitos o mais cedo possível”. (Thompson, 1998, p. 14) Ou seja, o costume revela a cultura local. Fica gravado no coração como diz Jean Jaques Rosseau. Desse modo o folclore e o patrimônio imaterial estão imbuídos de costumes.
Para tanto, o conceito de patrimônio imaterial que contempla complexo elementos tangíveis e intangíveis tornou-se prioridade no século XXI como respaldo de trazer aos folcloristas os estudos da devoção e dos costumes de um povo. “Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares" (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial.
Nesses artigos da Constituição, reconhece-se a inclusão, no patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria com a sociedade, dos bens culturais que sejam referências dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”(site do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional1).
Ao longo dos anos a discussão de proteção aos monumentos históricos e aos saberes foram pautas de caráter político e jurídico.
A pluralidade étnica de nossas manifestações e expressões trouxe vários confrontos e embates na pauta da cultura, circulação e consumo. Hoje nós temos o programa Cultura Viva e o Programa do patrimônio Vivo! “O desenho institucional do estado brasileiro para as pautas culturais, a partir dos anos 1930, carregam consigo aspectos de ausência, autoritarismo e instabilidade (Rubim, 2007).
Pela primeira vez, um programa de governo possibilitou o ensaio de rompimento dessas três tristes tradições. Com a Cultura Viva como ação estatal é inaugurada uma dinâmica de construção de ações socioculturais pressupondo autonomia e protagonismo com as comunidades, ou seja, de baixo para cima (Turino, 2009, p.81) Esse ensaio de rompimento com as características tradicionais da agenda cultura desempenhada pelo estado nacional não é tão simples. Para Célio Turino, essas mudanças sistêmicas exigem que o Estado seja um ‘Estado vivo’...”2.
Vale salientar que em Pernambuco temos “O Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco" (RPV-PE) tem por finalidade o apoio financeiro e a preservação dos modos de fazer, técnicas e saberes da cultura tradicional ou popular pernambucana valorizando a pessoa e seus patrimônios.”3. Toda essa dinâmica aponta para uma pauta interessante do folclore ou cultura popular que é a comunicação. Toda manifestação desencadeia em comunicação.
Nesse sentido, “pensar que não há hierarquia entre as culturas é supor que as culturas existam independentemente umas das outras, sem relações entre si, o que não corresponde à realidade" (Cuche, 1999, p. 50), o que, na prática, significa que a cultura popular, assim como todas as culturas, “é uma reunião de elementos originais e de elementos importados, de invenções próprias e de empréstimos. Como qualquer cultura, ela não é homogênea sem ser, por esta razão, incoerente (Cuche, 1999, p. 149)”4.
Como a cultura é viva, é dinâmica, necessitamos observar o tipo de devoção e sua mobilização ao sagrado. Observar com cautela os valores simbólicos que nos rodeiam. Outro ponto norteador para oxigenar metodologias está no uso dos verbos e no tempo dos verbos utilizados nas culturas populares. Esses verbos vão direcionar o seu estudo. Lembro-me que quando fui pesquisar num distrito da cidade de Custódia, em Pernambuco, as culturas populares, nas entrevistas utilizavam a expressão “lá tinha”.
Pensava numa lata pequena, mas, na verdade era para falar do passado, lá tinha fábrica, não tem mais, lá tinha festa, lá tinha feira, entre outras coisas que deixaram de existir para dar lugar aos novos imaginários pertinentes ao sentido dos dons secretos da atualidade. Assim, encontramos uma dificuldade em interpretar o folclore nos tempos da inteligência artificial. Mesmo porque os folcloristas atualizavam suas observações na era antes do wi-fi.
Devemos observar o uso da tecnologia nas culturas populares. Outro ponto interessante é a ancestralidade, os valores ancestrais indígenas, africanos que intensificaram e intensificam nossos costumes no processo civilizatório. Tudo isso porque os seres humanos gostam de criar. A esse respeito temos os memes, o folclore nos streaming, escola de Cavalo Marinho, Pontões de Cultura, museus orgânicos, temos um leque de informações organizados pelas políticas públicas. Mas, alguns folcloristas ainda estão perdidos diante de tantas novidades que ampliam o sentido dos bens culturais.
Necessitamos com urgência a criação de um grupo de aprofundamento de estudos sobre o folclore ou cultura popular, culturas populares, patrimônio imaterial…que possam pensar o novo com novidades. O pesquisador Sílvio Romero afirmava que o folclore deveria ser estudado cientificamente.
Então, devemos salientar e pontuar que pensar patrimônio imaterial é pensar patrimônio cultural. É pensar cidades em desenvolvimento econômico e sua política cultural na valorização das comunidades tradicionais, pois não há como separar o imaterial do material. Para tanto, melhor pensar em alimentar heranças compartilhadas na busca de considerar a evolução das técnicas culturais a partir também do uso da Inteligência Artificial. A memória das técnicas culturais conduz o sinônimo de uma economia sustentável.
A ciência do folclore é algo que nos força a compreender as culturas populares em seu cotidiano. É descobrir a beleza dos dons secretos do imaginário na tentativa de fotografar o descuido dos costumes em comum. Mesmo porque as culturas populares mostram ao Estado, um novo acesso aos seus desejos. Elas não ensaiam suas possibilidades diárias. Seus costumes são referência de uma personalidade, transformada em identidade que configura o poder da criatividade. Eu só sei que as culturas populares andam transformando no século XXI desconfianças do passado em futuros acontecimentos. Vem te bora estudar, que o folclore é isso…
Notas
1 Patrimônio imaterial.
2 Cultura viva conceito-fronteira: as redes de pontos de cultura do estado de Goiás.
3 Governo de Pernambuco lança edital do 20º Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco – Edição 2025.
4 O mito folclórico brasileiro na era digital: diálogos entre cultura popular, cultura de massa e hibridização cultural.