Felicidade e filosofia
A felicidade é, sem margem de dúvidas, uma das conquistas (?) mais almejadas pelo ser humano. O dicionário diz de estado de quem é feliz, sentimento de bem-estar e contentamento. Esta é a superfície de um conceito que pode ser visto de vários ângulos e com profundidades diferentes.
A busca pela felicidade ou a compreensão desta para a vida do homem faz parte das primeiras reflexões filosóficas sobre ética, elaboradas na Grécia Antiga. Felicidade já foi entendida por Tales de Mileto como “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Foi considerada por Sócrates como o “bem da alma que só podia ser atingido por meio de uma conduta virtuosa e justa” e reforçada pelo seu discípulo Platão. Aristóteles criticou o idealismo do mestre, “reconhecendo a necessidade de elementos básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa situação socioeconômica para alguém ser feliz”. E ambos defendiam que era função do Estado tornar os homens felizes.
Depois de Alexandre, o Grande, correntes distintas da filosofia concluem o mesmo, que para ser feliz, “o homem deve ser não só autossuficiente, mas desenvolver uma atitude de indiferença, de impassibilidade, em relação a tudo ao seu redor.” Para Epicuro, o prazer era essencial para a felicidade, tanto é que sua filosofia era o hedonismo.
Na Idade Média, a felicidade não interessou aos filósofos cristãos e desapareceu do horizonte da filosofia, só reaparecendo na Idade Moderna com John Locke e Leibniz e o entendimento de que “a felicidade é um prazer duradouro”.
Kant definiu felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade.” Volta nesta mesma época, a felicidade como direito do homem, como está na constituição dos Estados Unidos, sob influência do Iluminismo. Bertrand Russell, em síntese, afirma que “a felicidade é a eliminação do egocentrismo”.
Outros teóricos refletiram sobre a felicidade, nem sempre especificamente sobre o tema, mas ao pensar na humanidade, está intrinsecamente conectado.
Motivos para ser feliz?
De acordo com o lugar comum, o dinheiro não traz felicidade, mas manda comprar, uma brincadeira que alguns acreditam verdadeiramente. O dinheiro pode comprar as necessidades estabelecidas pela mente, como motivações para ser feliz. Isto são estratégias para preencher algum buraco, ou um vazio interno. No entanto, a reflexão que aqui se faz é, se a insatisfação é interna, poderá algo externo suprir?
Há também uma falta de lógica na correspondência entre os valores de cada um quando o assunto é dinheiro e felicidade. São exemplos, duas situações em contraponto: um lugar caro e luxuoso na companhia de pessoas que não se conectam vale menos felicidade do que a simplicidade de um encontro com pessoas especiais, mesmo que em local cotidiano, elementar ou inusitado. A felicidade não pode ser comprada.
Entender a felicidade como entorpecimento da mente, ou seja, afastando-a dos problemas e desejos que ela tem, é uma outra estratégia que pode ser confundida com felicidade. Nesta situação, jogos, bebidas e até mesmo passar horas assistindo séries e filmes (comédias, geralmente) apenas vão distrair a mente. Ela ingenuamente achará, por algum tempo, que está muito bem, enquanto está apenas se entretendo.
A partir do significado básico de felicidade, os motivos que fazem uma pessoa feliz podem não ser os mesmos para outras, afinal, somos singulares e critérios culturais e sociais são envolvidos quando se trata da realidade de cada um. Neste ponto, entende-se que há motivos e critérios distintos para definir felicidade e, além disso, como se trata de um estado, é efêmero e transitório para todos.
As motivações ou as estratégias para ser feliz, funcionam parcialmente, elas vêm e vão, claro está. E cada vez mais, na ausência destes motivos (consumo, viagem, paixão, outros), a busca incessante permanece. Um desassossego que não tem fim. Neste viés, temos os momentos felizes, tão fugazes quanto suas especificidades. Esta clareza é importante para a elucidação da realidade.
Felicidade como sabedoria
Para Sidharta Gautama, o Buda, “Não existe um caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho”, ou seja, é melhor encontrar satisfação enquanto se vive, no presente da experiência de viver, sem priorizar o destino. O que se entende por caminho de viver é o equilíbrio (que não é um conceito estático) com discernimento e lucidez. Este foi um dos principais ensinamentos do mestre.
Rumi, poeta persa, em seu poema A casa de hóspedes diz que devemos receber tudo que chega, seja raiva, alegria, tristeza, como um visitante temporário enviado pelo Universo.
O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.
A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.
Receba e entretenha a todos.
Mesmo que seja uma multidão de dores.
Que violentamente varrem sua casa e tiram seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.
O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.
Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.
Aceitar as leis universais da natureza é uma forma inteligente de perceber o mundo em sua totalidade impermanente e transitória, incluindo a nós mesmos. Nem prazer e nem sofrimento duram para sempre. Nada é permanente e todas as experiências são temporárias. Desenvolver a habilidade de sermos observadores de nós mesmos com a consciência de que tudo vai passar, faz com que estejamos centrados e, assim, não ficamos escravos de pensamentos e emoções. Agindo desta forma, desenvolvemos o desapego e libertamos a nossa mente das buscas por felicidade, por exemplo. Isto é aceitar a realidade com serenidade e abertura. O segredo é observar sem se envolver, sem deixar que sensações, pensamentos e emoções (agradáveis ou não) se fixem, pois numa mente clara, todas as nuvens se dissipam. Atingir esta consciência é felicidade.
A sabedoria ancestral também tem as noções de felicidade a partir do entendimento do homem no mundo. Segundo os textos Védicos, o ensino de Vedanta (a meta de todo conhecimento) contempla a compreensão do conhecimento da natureza da realidade. E nesta metafísica, a felicidade está conectada ao ser fundamental, ou seja, se há o autoconhecimento, a pessoa pode exercer qualquer papel (persona), passar por qualquer adversidade que saberá quem é de verdade, um ser muito maior que o corpo e a mente que habita. E este é o cerne da felicidade. É um caráter mais elevado de felicidade, pois ela não depende de nenhuma condição externa. O contentamento em ser é a própria felicidade.
Felicidade e o nosso poeta
Para Guimarães Rosa, ao simplificar e engrandecer o conceito, diz que “Felicidade se acha é em horinhas de descuido”.
Ao poetizar a vida, quais são as suas horinhas de descuido preferidas?