O que realmente importa na vida? Esta é a pergunta que não me sai da cabeça após assistir a Dias Perfeitos (Perfect Days – 2023) filme japonês do diretor alemão Wim Wenders.

O questionamento sobre o sentido da vida existe desde que o homem se tornou um ser pensante, e tem sido um tema recorrente na filosofia, na psicologia e na arte. De Sócrates a Nietzsche, de Shakespeare a Fernando Pessoa, de Bergman a Monty Python todos ofereceram uma reflexão sobre o nosso papel neste mundo.

Wim Wenders e Dias Perfeitos não têm toda essa pretensão. Não se trata de um filme intelectualizado sobre a filosofia e a natureza humana. Pelo contrário, é um filme despretensioso em sua essência, que suscita uma reflexão justamente por apresentar o cotidiano na sua forma mais pura, quase voyeurística, da vida de um homem de meia idade. E aí está a beleza do filme.

A sensibilidade de Wenders traduz em poesia visual a insignificante vida de Hirayama, encarregado da limpeza de casas de banho públicas na cidade de Tóquio. Ele mora num apartamento minúsculo, onde tem espaço apenas para ler, dormir e cuidar de suas plantas. Toma seus banhos e faz suas refeições fora de casa e ouve música no seu também minúsculo carro de serviço.

Acompanhamos sua rotina diária de trabalho, do momento em que ele acorda ao momento que vai dormir. Acompanhamos também seus sonhos, as imagens que projeta em sua mente, em preto e branco, como as fotografias que tira todos os dias no intervalo de seu trabalho. Seus sonhos são jogos de luz e sombras em movimento, como as árvores do bosque onde almoça, e como a brincadeira que conclui a jornada de Hirayama.

A projeção de sombras é a metáfora do cinema e da fotografia, artes que só existem diante da luz. Esse é o registro que o personagem guarda da vida: as sombras das árvores dia a dia, quase como uma prova da sua existência. Em determinada sequência, Hirayama diz a sua sobrinha que o agora é o agora e que o depois é um conceito abstrato. Da mesma forma que a brincadeira das sombras com o estranho condenado traz a alegria para uma situação trágica naquele momento presente. É como se as sombras fossem a prova da nossa existência. Uma evidência efêmera que vale somente para o agora. Depois é depois.

Os Dias Perfeitos são todos os dias. São dias de trabalho duro, limpando as casas de banho com rigor e rotina em que nem a conversa com um colega deve e pode atrapalhá-lo. Assim, de ponto em ponto, o personagem passa o seu dia, com um intervalo para uma refeição ligeira no banco da praça, enquanto observa e tira fotos da luz entre as árvores.

Sua fotografia é analógica, claro, que permite o tempo passar entre a captação e a revelação das imagens. Na realidade, a vida de Hirayama é analógica. Ouve suas músicas em fitas cassete, selecionadas no início de sua jornada diária. Sua rotina é o que há de mais simples. Não tem móveis em casa, sua roupa é seu uniforme de trabalho, pendurado e retirado a fim do dia, e vestido na manhã seguinte. Ao sair de casa com as primeiras luzes do dia, ele recolhe seus pertences, moedas, câmera fotográfica, sai de casa, pega o café na máquina automática, entra no carro, escolhe seus cassetes e parte para o dia.

Esta história pode soar monótona à primeira vista. Seguimos essa rotina na primeira metade do filme, quase sem nenhum som emitido pelo protagonista. As poucas pessoas com as quais ele interage já o conhecem, sabem de suas necessidades, gostos e com isso, poupa-nos de diálogos ou exposições verbais. Não precisamos que ninguém nos diga quem é Hirayama, seu passado, suas motivações, seus objetivos. Apenas vivemos com ele seu dia a dia e vamos o desvendando silenciosamente. Cada ação sua e cada interação com outras pessoas vão nos dando as peças para montarmos o quebra-cabeça, para conhecermos o passado, a família, as motivações e desejos de Hirayama.

Uma coisa é certa: o filme seria um desastre e uma chatice sem tamanho se o personagem do Hirayama não criasse uma empatia conosco desde a primeira cena. E isso só é possível pelo trabalho monstruoso de um excelente ator, o japonês Kôji Yakusho, que também é produtor executivo do filme. A interpretação de Yakusho é soberba, minimalista, focada quase que exclusivamente na sua expressão facial. Dias Perfeitos é um filme de planos médios e close-ups, os espaços são apertados, a casa de Hirayama, o carro, as casas de banho. São os ambientes que limitam a ação do personagem e valorizam a sua expressão. O parque, os passeios de bicicleta, o rio, são os momentos de libertação e respiro para a vida cotidiana.

Temos várias camadas de interpretação desse filme. Mas não se trata de uma obra intelectual. Dias Perfeitos funciona muito bem para explorarmos numa estrutura dramática a vida e o dia a dia numa cultura diferente. Urbana, moderna, tecnológica, mas recheada de questões filosóficas, que valoriza o ser humano, que respeita e dignifica os mais velhos, que preserva costumes e valoriza a simplicidade da vida.

O curioso é que Dias Perfeitos não nasceu como um filme de ficção. O realizador Wim Wenders foi convidado a fazer um documentário para promover o projeto The Tokyo Toilet. Trata-se de uma iniciativa privada que encomendou a 16 designers e arquitetos a criação de casas de banho públicas de alta qualidade. A primeira foi inaugurada em 2020 para os Jogos Olímpicos (2021), e hoje são 17 instalações na cidade de Tóquio. Elas refletem a cultura japonesa, e fundem o moderno com o tradicional, cada uma delas com uma identidade própria.

O projeto tornou-se em um case arquitetônico de sucesso. Entre os arquitetos criadores estão 4 vencedores do Pritzker Prize, o prêmio mais importante do mundo da arquitetura.

De tempos em tempos aparece um filme com Dias Perfeitos, que acontecem na hora certa, quando discutimos com todos e queremos estar certos a cerca de tudo, sempre, e não importa esse outro, desde que a minha opinião prevaleça. Não importa o mundo, desde que eu o consuma por inteiro, que acumule coisas, que tenha fortuna e poder.

Dias Perfeitos é um travão na velocidade desenfreada que alcançamos. Não precisa ser assim, podemos ouvir músicas antigas, podemos ler livros que já foram lidos, podemos apreciar a luz entre as folhas das árvores e registar o momento com uma câmera analógica. Nosso impulso acelera a vida até não conseguirmos mais pular fora, mas há vida inteligente, e muito inteligente, fora desse comboio. Wim Wenders e Kôji Yakusho que o digam.