A vigilância, outrora restrita ao controle estatal, agora permeia nossas vidas. Das redes sociais que mapeiam nossas interações até algoritmos que determinam o conteúdo que vemos, nosso dia a dia gera cada vez mais rastros. Os cookies, praticamente invisíveis, rastreiam cada clique, cada busca, moldando nossas experiências digitais e nossas escolhas no mundo físico. Sob a fachada de segurança ou da conveniência de uma “experiência mais personalizada”, o aumento da vigilância levanta questionamentos profundos.
Preocupados com tais questões, a Surveillance Art - ou arte da vigilância – tornou-se um canal de expressão poética e de resistência. Muito além da simples denúncia, artistas de diversas nacionalidades e disciplinas expõem os mecanismos de controle e as relações de poder, instigando o público a refletir sobre as consequências de ceder tantas informações em troca de conveniências aparentemente inofensivas.
A emergência da Surveillance Art como campo de atuação artística, está associada aos acontecimentos que reconfiguraram as noções de segurança e controle no mundo contemporâneo. Após os ataques de 11 de setembro e da subsequente intensificação da vigilância, muitos artistas passaram a utilizar as próprias ferramentas de controle como meio de expressão artística.
A câmera de vídeo, como um dos símbolos desse contexto, era outrora apenas um vigilante silencioso. Na arte de vigilância, esse objeto é ressignificada e utilizado para desvelar as estruturas de poder que operam por trás da tecnologia. Ao usar as ferramentas de controle em suas obras, esses artistas subvertem suas funções originais, revelando o modo como o poder é exercido sobre os corpos e subjetividades.
Na obra The Nightwatch, o artista Francis Alÿs faz da vigilância o centro de sua narrativa poética. Ao soltar uma raposa no National Portrait Gallery de Londres — um espaço altamente monitorado por câmeras —, Alÿs desafia as pretensões de controle absoluto almejados por essas tecnologias. A raposa, conhecida por sua astúcia, circula livremente pelo ambiente, expondo as fragilidades e limitações do sistema.
As obras de Surveillance Art, não se restringem a uma abordagem direta ou puramente explicativa. Pelo contrário, ao reconstruir visual e conceitualmente as dinâmicas de poder, e ao confrontar o público com a materialidade da vigilância, essas obras instigam uma reflexão crítica mais profunda sobre nosso papel na perpetuação desse sistema.
Nos Estados Unidos e na Europa, diversos artistas têm explorado o papel da vigilância como mecanismo de controle social e disciplinar. Hasan Elahi, por exemplo, converteu sua experiência pessoal de ser um suspeito do FBI em um projeto de autovigilância radical. Depois de ser injustamente incluído em listas de suspeitos de terrorismo, Elahi começou a documentar meticulosamente todos os aspectos de sua vida cotidiana em seu site Tracking Transience, transformando-se em um vigilante de si mesmo.
De maneira provocativa e estratégica, Elahi expôs o paradoxo da vigilância contemporânea. Ao compartilhar voluntariamente todos os seus dados pessoais, ele subverteu a lógica do controle, tornando-se sujeito ativo da própria vigilância. Dito de outro forma, essa ação ousada desafiou as estruturas de poder ao questionar a eficácia da vigilância em massa.
Outro exemplo é Manu Luksch, cujas obras subvertem o uso de câmeras de segurança ao transformar as imagens capturadas em narrativas ficcionais. Em Faceless, Luksch imagina uma sociedade futura em que a vigilância é absoluta, mas o acesso às imagens de rostos humanos é severamente restrito. Assim, a artista reconfigura a vigilância de uma forma poética, oferecendo uma crítica ao controle impessoal exercido pelas tecnologias de monitoramento.
Na América Latina, a Surveillance Art assume uma carga política ainda mais acentuada, dada a história de regimes autoritários e repressão estatal. Durante as ditaduras militares que assolaram diversos países da região nas décadas de 1970 e 1980, a vigilância foi amplamente utilizada como um instrumento de controle e opressão. Por essa razão, o passado histórico é constantemente revisitado nas obras de artistas latino-americanos, que exploram as cicatrizes deixadas pela vigilância estatal, refletindo sobre novos mecanismos de controle.
No Peru, Alfredo Marquez, explora esse contexto em (Des)instalación Ecce Homo, sua obra que recria a vigilância em prisões peruanas durante o regime de Fujimori. Marquez utiliza imagens de câmeras de segurança para confrontar o espectador com a brutalidade das condições carcerárias, ao mesmo tempo em que critica o papel da vigilância na criação de uma sociedade de controle. Sua obra denuncia a invisibilidade dos corpos aprisionados e o olhar impessoal que os vigia de maneira contínua.
Outro artista latino-americano que aborda o tema da vigilância é Aníbal López, da Guatemala. Em sua obra 30 de Junio, 2000, López utiliza carvão para criar uma "contravigilância" simbólica de um desfile militar, em referência direta à violência estatal durante a guerra civil guatemalteca. A obra subverte o uso convencional da vigilância, convertendo-a em um ato de resistência, onde o próprio ato de vigiar torna-se um ato de denúncia e contestação.
Na América Latina a vigilância, não está restrita ao espaço institucional; ela permeia o cotidiano, influenciando as relações sociais e afetando de forma desigual as populações mais vulneráveis. A banalização da vigilância é o tema central da obra de Marcela Moraga, La vida es un gran cine. A artista chilena critica a proliferação de câmeras em espaços públicos e sua utilização pela mídia para transformar a vigilância em espetáculo.
No Brasil, a vigilância está profundamente associada à violência urbana e à segregação social. A proliferação de câmeras de segurança em áreas urbanas, sobretudo nas regiões mais ricas, contrasta com a invisibilidade e o abandono das periferias. Nesse contexto, a Surveillance Art brasileira reflete de maneira mais incisiva as tensões sociais e políticas de um país onde o controle visual se converte em símbolo de privilégio e exclusão.
O coletivo mm não é confete é um dos principais exemplos dessa poética da vigilância. Suas intervenções urbanas, como Performances Panopticadas, utilizam microcâmeras e projeções ao vivo para criar experiências imersivas que questionam a saturação de imagens de vigilância nas grandes metrópoles. Ao transformar o espaço público em um palco de vigilância artística, o coletivo expõe as dinâmicas de visibilidade e controle presentes nas cidades brasileiras.
Lucas Bambozzi e Paloma de Oliveira, em Do Sofá da sua Casa (2010), abordam a espetacularização da violência pela mídia, recriando os ataques do PCC em São Paulo por meio de video mapping. A obra questiona a fragilidade do sistema prisional e a maneira como a mídia manipula as imagens de violência para justificar a intensificação da vigilância. A relação entre imagem, violência e controle social torna-se central na crítica de Bambozzi e Oliveira.
Giselle Beiguelman, por sua vez, explora a intersecção entre tecnologia, espaço público e vigilância. Seus projetos interrogam o impacto dos dados e algoritmos no controle social e na construção de subjetividades digitais. Beiguelman reflete sobre como a vigilância invisível, operadas através dos sistemas digitais, molda comportamentos e perpetua desigualdades, ao mesmo tempo em que sugere novas formas de resistência e apropriação das tecnologias.
Por meio de sua poética crítica, a Surveillance Art não apenas denuncia as práticas de vigilância, mas também convida o público a refletir sobre seu papel nesse sistema. Ao ressignificar as tecnologias de controle, os artistas criam formas de ver e ser visto, subvertendo as narrativas de poder e fomentando uma reflexão aprofunda sobre o preço de uma suposta segurança em uma sociedade altamente monitorada.