No imenso salão da Pinacoteca de São Paulo, durante a exposição "Véxoa: Nós Sabemos" (2020), as formas fluidas em tons de azul intenso da obra de Jaider Esbell capturam imediatamente o olhar. Um ser mítico, meio humano, meio rio, emerge da superfície pictórica enquanto ao fundo símbolos gráficos ancestrais se justapõem a imagens de devastação ambiental.
É assim que o artista makuxi, falecido em 2021, materializava em seus trabalhos o que suas palavras articulavam com precisão: "Nossa arte não é sobre o passado, mas sobre futuros possíveis" – declaração registrada em entrevista à Revista Select em 2019.
A obra de Esbell condensa as tensões que definem o movimento atual da arte indígena contemporânea brasileira — uma produção que resiste ao apagamento histórico e reivindica protagonismo nas discussões sobre um mundo em transformação.
O conceito de Antropoceno — proposto para designar um período marcado pelos impactos significativos da ação humana sobre os sistemas terrestres — tem sido um importante campo de diálogo para artistas originários. Povos indígenas em suas cosmopolíticas apontam que os desequilíbrios ambientais têm origens profundamente ligadas à colonização e à lógica extrativista que a acompanhou.
É a partir desse entendimento que diversos artistas indígenas brasileiros têm ganhado visibilidade em instituições nacionais e internacionais, propondo críticas ao sistema colonial e oferecendo visões alternativas baseadas em epistemologias ancestrais.
Da margem ao centro: uma trajetória de reposicionamento
"A floresta é uma biblioteca viva, e estamos queimando seus livros", afirmou Ailton Krenak em "Ideias para Adiar o Fim do Mundo" (2019). Essa metáfora traduz a urgência do movimento que vemos hoje. Durante a maior parte do século XX, a produção artística indígena foi relegada aos departamentos de antropologia dos museus, categorizada como "artesanato étnico" ou, na melhor das hipóteses, como "arte naïf" — classificações que negligenciavam sua contemporaneidade e seu potencial crítico.
A virada histórica começou a se desenhar no início dos anos 2000, mas ganhou força somente na última década. Eventos como a participação indígena na Documenta 15 (2022) em Kassel, Alemanha, e a crescente incorporação dessas produções em acervos institucionais sinalizam mudanças importantes no sistema das artes. Não se trata de inclusões esporádicas, mas de um reconhecimento crescente da relevância dessas visões para o debate contemporâneo.
Embora não existam estatísticas oficiais abrangentes sobre a presença indígena em exposições nacionais, exposições como "Véxoa: Nós Sabemos" (Pinacoteca, 2020), "Nhe'ẽ Porã: Memória e Transformação" (MASP, 2023) e a crescente aquisição de obras indígenas por instituições como o Museu de Arte Moderna de São Paulo sugerem uma transformação gradual no cenário artístico brasileiro. Paralelamente, o mercado tem respondido a essa mudança — não sem contradições, como veremos adiante.
Constelação de vozes: artistas que redesenham o presente
Denilson Baniwa, artista do povo Baniwa, tem usado sua prática para o que ele mesmo define como "infectar o sistema colonial com um vírus indígena" — frase documentada em entrevista ao Portal Arte!Brasileiros em 2022. Seus trabalhos frequentemente apropriam-se de símbolos da cultura ocidental e os reconfiguram sob perspectivas indígenas, como na série "ReAntropofagia", onde ícones como a Mona Lisa e personagens de quadrinhos são reinterpretados com elementos da cultura Baniwa.
"Usar a linguagem do colonizador para promover uma deseducação visual é minha estratégia", explicou Baniwa em palestra no Itaú Cultural em 2021. "Não estamos apenas reivindicando espaço nos museus, estamos propondo outra forma de habitar o mundo." Sua produção multimídia abrange instalações, performances, pinturas e intervenções digitais que frequentemente estabelecem diálogos entre elementos da cultura pop ocidental e símbolos de sua ancestralidade.
Em um registro distinto, mas complementar, Daiara Tukano tem construído uma obra que entrelaça ativismo, pesquisa e produção visual. Suas pinturas, que dialogam com padrões visuais tradicionais tukano, têm circulado em exposições como a coletiva "Moquém_Surarî: Arte indígena contemporânea" no MAM-SP (2021), explorando tanto a beleza das cosmologias de seu povo quanto denunciando violações de direitos indígenas.
"A questão não é apenas estética, mas política e espiritual", afirmou Tukano durante o seminário "Arte Indígena Contemporânea" na USP em 2022. Além de sua produção artística, ela mantém uma presença digital significativa, usando plataformas como Instagram para amplificar discussões sobre direitos territoriais e ambientais.
A produção coletiva também tem se mostrado uma peça-chave dessa cena. O MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin), documentado no livro "Huni Kuin: Yuxibu" (2020), transformou cantos xamânicos em pinturas de cores vibrantes que têm circulado em exposições nacionais e internacionais. Fundado pelo pajé Ibã Huni Kuin, o coletivo desenvolve trabalhos que traduzem visualmente experiências espirituais relacionadas à medicina tradicional ayahuasca, criando pontes entre mundos aparentemente distintos.
"Não pintamos para decorar paredes, mas para manter vivo o conhecimento", explicou Ibã em entrevista ao catálogo da exposição no Centro Cultural Banco do Brasil (2019). As telas do MAHKU, com seus padrões geométricos precisos e figuras de seres transespecíficos, funcionam simultaneamente como objetos estéticos e como dispositivos de transmissão de conhecimento.
Temas emergentes: além da resistência
A relação com as mudanças climáticas e ambientais permeia essas produções, mas não como tema exógeno, e sim como realidade vivida. A artista e bióloga Uýra Sodoma, que se apresenta como "uma árvore que caminha", usa seu corpo em performances que documentam as transformações na floresta amazônica. Em sua série fotográfica "Mil Quase Mortos" (2018), documentada no catálogo da exposição "Histórias Brasileiras" (MASP, 2022), Uýra aparece coberta de elementos naturais, folhas e tintas que remetem a grafismos indígenas, em áreas degradadas ou em recuperação.
"Meu corpo é político e minha arte é uma forma de cura", afirmou em entrevista à revista AzMina (2020). Seu trabalho estabelece diálogos com o movimento queer e ecofeminista, construindo pontes entre pautas que frequentemente são tratadas separadamente. Esse trânsito entre diferentes lutas reflete um aspecto importante da arte indígena contemporânea: sua capacidade de articular questões ambientais, territoriais, de gênero e políticas em reflexões integradas.
O uso de tecnologias digitais tem sido outro ponto relevante dessa produção. Contrariando expectativas essencialistas, muitos artistas indígenas incorporam ferramentas digitais em suas práticas. A plataforma online "Vídeo nas Aldeias", por exemplo, documenta desde 1986 o uso do audiovisual por realizadores indígenas, enquanto iniciativas mais recentes como a Rede Indígena de Memória e Museologia Social desenvolvem projetos de documentação digital de saberes.
"Usar tecnologia digital não nos faz menos indígenas, assim como usar pintura a óleo não faz um artista europeu menos europeu", afirmou Denilson Baniwa em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (2021), rejeitando a falsa dicotomia entre tradição e inovação frequentemente imposta às produções indígenas.
Contradições do mercado e desafios institucionais
O reconhecimento da arte indígena contemporânea não aparece livre de tensões. A valorização mercadológica dessas produções — com obras que agora integram coleções importantes e alcançam valores consideráveis em galerias — coloca em evidência o risco da comercialização descontextualizada de expressões que têm dimensões coletivas e políticas.
"Precisamos estar atentos para que o sistema de arte não reproduza a mesma lógica extrativista que denunciamos", alertou Sandra Benites, curadora guarani, em artigo para a revista Select (2021). Ela destacou que exposições como "Véxoa: Nós Sabemos" (Pinacoteca, 2020), embora representem avanços importantes, ainda suscitam debates sobre participação indígena nas decisões curatoriais e compartilhamento de benefícios com as comunidades.
Essas contradições, no entanto, não diminuem a potência transformadora dessa produção. Pelo contrário, têm estimulado debates necessários sobre práticas curatoriais, políticas de aquisição de acervos e formação de públicos. Instituições como o MASP têm revisado seus procedimentos, incorporando discussões com lideranças indígenas para aquisição e exibição de obras. Outras, como o Museu de Arte Contemporânea da USP, têm promovido seminários e residências artísticas que buscam estabelecer diálogos mais horizontais.
Para além do fim do mundo
A contribuição da arte indígena contemporânea não se resume a uma crítica ao modelo civilizatório que nos trouxe à crise ambiental, mas principalmente à afirmação de outras possibilidades de existência.
Em um momento em que dados do Instituto Socioambiental (2022) apontam que territórios indígenas na Amazônia enfrentam níveis alarmantes de desmatamento e invasões, essa produção artística emerge como registro de resistência, como laboratório ativo de futuros possíveis. As obras materializam cosmologias onde a separação entre humanos e não-humanos se dissolve, onde o tempo não é linear, onde a floresta é sujeito e não recurso.
Para as instituições artísticas brasileiras, o desafio que se coloca vai além da inclusão de artistas indígenas em suas programações. Trata-se, antes de mais nada, de repensar estruturas de poder, políticas de formação e mediação, e principalmente, de abrir espaço para que essas vozes não apenas participem, mas transformem o próprio sistema das artes.
Não se trata de conceder voz aos indígenas, mas sim de garantir que suas vozes sejam ouvidas em seus próprios termos, pois eles sempre foram capazes de falar por si mesmos. É nesse sentido que a arte indígena contemporânea não representa apenas uma nova tendência no circuito artístico, mas um chamado para uma transformação radical em nossa forma de habitar o planeta — um convite para, como sugere Krenak, "adiar o fim do mundo".















