O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

(Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas)

O principal alerta que destaco inicialmente é: a discussão presente aqui refere-se a uma experiência particular, que não corresponde a todas as vivências dos sujeitos, embora dialogue com a totalidade. Minha escolha pelo curso de Psicologia estava motivada no interesse em estudar essa ciência, e não envolvia, de início, o desejo de trabalhar na área — embora imaginasse que isso poderia acontecer um dia. Porém, precisava vivenciar e criar sentido, na relação que estava me propondo estar, com o processo formativo. Os Outros – meus colegas, diferentemente de mim, em sua maioria, tinham o objetivo de trabalhar como psicólogos clínicos, geralmente em psicoterapia e orientando-se pelas clássicas abordagens da Psicologia Clínica: Psicanálise, Terapia Cognitivo-Comportamental e Psicologia Humanista ou Fenomenológico-Existencial — as tendências formativas de sempre.

Nenhuma dessas abordagens convidou minha atenção e interesse mesmo após buscar me apropriar sobre seus conceitos, categorias, análises e discussões sobre a maioria delas, por meio de eventos, leituras guiadas, aulas, etc. Estava lúcido: se não consigo me identificar, ver sentido ou me apropriar minimamente dessas abordagens, não conseguirei trabalhar como psicólogo clínico e psicoterapeuta. Com essa experiência inicial, desenvolvi um distanciamento e um sentimento de não pertencimento tanto em relação aos componentes curriculares que tratavam dessas teorias e da Psicologia Clínica, quanto da profissão “psicólogo clínico”, ao mesmo tempo não sabia onde me localizar na área. Sentia-me, cada vez mais, como um pássaro sem ninho.

Por outro lado, as disciplinas que exploravam áreas e possibilidades de trabalho como psicólogo despertavam minha curiosidade e instigavam horizontes possíveis para mim. Antes de entrar na Psicologia, desconhecia a amplitude dos campos em que os psicólogos poderiam trabalhar. Assim, aproximei-me das discussões sobre a atuação nas políticas públicas de saúde e assistência social, justamente em um período em que eu desenvolvia uma consciência política, estética, social e crítica cada vez mais efervescente. Tornava-se evidente para mim: me orientaria pelos caminhos de uma Psicologia Crítica.

Certa vez, um professor de Psicologia Fenomenológico-Existencial mencionou que, mesmo para quem não desejava “clinicar”, era importante olhar para a Psicologia Clínica de outra forma, pois a realidade do psicólogo brasileiro frequentemente envolvia múltiplos empregos, com a clínica sendo um complemento de renda. Essas palavras ressoaram novamente em uma disciplina de políticas públicas, quando a professora falava sobre os desafios de atuar no terceiro setor. Ela destacou que, muitas vezes, a clínica funcionava como um subterfúgio para os psicólogos mal remunerados nos equipamentos de saúde pública ou assistência social.

Esses avisos incutidos da realidade neoliberal brasileira eram difíceis de engolir, pois traziam à tona o receio dos desafios da área: desemprego, mercado saturado, falta de piso salarial fixo, ausência de carga horária definida, contratos precários e pouca autonomia – isto é, a precarização também do trabalho do psicólogo. Perguntava-me: haveria saídas? Sempre seria assim? Não poderia ser diferente? Apesar dessas incertezas tentava colocá-las debaixo das asas, imaginando outra realidade, particular, possível, ainda que para os Outros fosse utópica.

Ao estudar sobre a inserção da Psicologia em instituições públicas e privadas, tive contato com autores que pesquisaram sobre a História da Psicologia e a Psicologia Social e Comunitária, como Ana Mercês Bahia Bock, Wanda Junqueira de Aguiar, Maria da Graça Gonçalves, Silvia Lane, Fernando González Rey e Odair Furtado. Todos eles mencionavam Lev Semionovich Vigotski (1896-1934), um autor que desenvolveu uma Psicologia crítica baseada no materialismo histórico-dialético, contrapondo-se às teorias dominantes do século XX. Pela primeira vez, senti um forte interesse, desejo e vontade de estudar profundamente alguma teoria em Psicologia.

Após ler o livro Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia (Bock; Furtado; Teixeira, 2001) – que trata do desenvolvimento histórico da Psicologia enquanto ciência, adquiri minha primeira obra sobre Vigotski: Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia (Bock; Gonçalves; Furtado, 2015). Logo no primeiro capítulo, em uma perspectiva vigotskiana, afirmava-se que os fenômenos psicológicos não pertencem à “natureza humana”, ou seja, não são inatos nem geneticamente herdados, mas refletem as condições sociais, econômicas e culturais em que vivem os seres humanos (Bock, 2015). Essa ideia foi transformadora, pois até então eu só tinha me apropriado minimamente de discussões respaldadas em abordagens que não ou pouco questionavam a essência social e histórica do sujeito.

O livro também apresentava fundamentos teóricos para práticas baseadas nessa abordagem, como: 1) examinar os objetos em sua totalidade concreta, onde as partes interagem para constituir o fenômeno; 2) acompanhar o movimento e a transformação contínua dos fenômenos; 3) reconhecer que as contradições internas dos objetos são a força motriz de sua transformação.

Ainda não havia lido Vigotski diretamente, mas suas ideias já me instigavam. Entrei em um grupo de estudos que abordava fundamentos vigotskianos em diversas áreas, incluindo a Psicologia Clínica. Foi então que li meu primeiro texto sobre o tema: A psicoterapia sócio-histórica (Lima; Carvalho, 2013). O texto traduziu conceitos vigotskianos para o contexto clínico, apresentando caminhos para uma prática psicoterapêutica fundamentada nessa teoria.

Decidi, então, buscar na biblioteca da faculdade a primeira obra com escritos de Vigotski e não mais por pesquisadores que me explicavam suas ideias: A formação social da mente (Vigotski, 2004). Apesar das deturpações na tradução, a obra evidenciava a insatisfação de Vigotski com as Psicologias dominantes de sua época, algo com que me identifiquei profundamente. Ele propunha princípios metodológicos de análise dos fenômenos como: 1) estudar processos e não objetos, 2) buscar explicações em vez de descrições, 3) compreender o desdobramento dinâmico de processos em sua origem. Hoje, entendo que fazer a leitura deste livro e, em particular, desses princípios, ampliaram minha visão sobre o papel do psicólogo e os caminhos possíveis na clínica.

No último ano do curso, optei por estagiar na área clínica, atendendo por um ano inteiro a demanda do serviço de Psicologia da universidade. Foi uma experiência significativa, enriquecida por supervisões e discussões coletivas de casos na abordagem vigotskiana que aprofundaram minha compreensão sobre conceitos como subjetividade, historicidade, trabalho, desenvolvimento e as relações entre singular, particular e universal e constituição do sujeito.

Todas essas mediações estiveram presentes nesse desejo particular de me profissionalizar em algo que faria sentido para mim. Não foi uma construção dada por outra pessoa a mim ou um “acaso”. Teve mediação, busca, luta, frustração, angústia e muita crise até finalizar o curso e desenvolver um estudo de caso sobre alguém que eu estava atendendo durante um ano inteiro. Porém, além das dores, afirmo que, particularmente, encontrei na Psicologia um espaço que ressoa com minhas inquietações e valores. Os motivos são o que impulsiona o ser humano em direção à ação, pois relacionam uma necessidade concreta a um objetivo significativo para o sujeito.

É exatamente isso que vivencio ao escolher, diariamente, adotar uma postura mediativa nos atendimentos psicoterapêuticos. Essa experiência concreta e singular me leva a reafirmar: a história de cada pessoa não é fixa, nem se limita a um passado que deve ser esquecido, mas é recriada continuamente. É nesse horizonte que encontro o propósito da minha atuação: promover no sujeito a reflexão, o senso crítico e sensível necessários para transformar a si mesmo e sua história, sempre em movimento.

Referências

Bock, A. M. B.; Furtado, O.; Teixeira, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.
Bock, A. M. B.; Gonçalves, M. G. M.; Furtado, O. Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, 2015.
Bock, A. M. B. A Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. Em: Bock, A. M. B.; Gonçalves, M. G. M.; Furtado, O. (orgs.) Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, p. 21-46, 2015.
Lima, P. M.; Carvalho, C. F. C. A psicoterapia sócio-histórica. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, p. 154-163, 2013.
Vigotski, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2004.