O interesse pela vida privada das personalidades artísticas, políticas, científicas e até das celebridades voláteis é uma marca do mundo contemporâneo. Nem mesmo pessoas que viveram há séculos escapam dessa saga de curiosos que especulam sobre aspectos de sua privacidade.
Esse é o caso do cientista dinamarquês Peter W Lund, reconhecido como o Pai da Paleontologia Brasileira, que viveu no Brasil no século XIX, desvendando os fósseis das cavernas de Minas Gerais. Sua personalidade reservada, metódica e estranha à cultura brasileira da época dá margem a constantes especulações e lendas sobre sua vida amorosa e relações familiares.
A vida privada de Peter Lund - diferentemente de sua trajetória profissional - não foi marcada por grandes aventuras, surpresas e reviravoltas. Lund nunca se casou, nem teve envolvimentos amorosos comprovados historicamente. Alguns biógrafos citam um romance que teria tido com uma italiana durante sua viagem pela Europa, entre 1829 e 1831. Outros citam um envolvimento com as filhas do Tenente Américo Coutinho da Fonseca, próspero comerciante de Lagoa Santa, cidade onde viveu por décadas e faleceu em 1880.
Quanto à italiana, seu filho adotivo Nerêo relatou que “Lund amou uma vez na vida, e teve desejos de se casar. Mas o amor da jovem e gentil italiana que conheceu quando viajava pela Itália, não foi forte bastante para se apossar do coração do sábio, que só pulsava pela ciência”. Porém, não há registros de encontros ou correspondências entre Lund e sua paixão italiana.
Quanto às jovens filhas do Tenente Américo, há uma história que sobreviveu no imaginário popular. Lund teria dado aulas de piano para as Três Moças - como ficaram conhecidas na cidade por nunca terem se casado. As moças teriam se apaixonado pelo cientista dinamarquês, mas não foram correspondidas. Há uma impossibilidade prática para esse ocorrido, demonstrada por uma simples verificação documental.
A mais velha das Moças, Ana Ursulina, nasceu em 21/10/1862; Flávia Domitila em 27/08/1867 e a mais nova, Maria América, em 15/10/1868. Lund já passava, portanto, dos 60 anos de idade, já que nasceu em 1801. Houve realmente uma convivência com a tradicional família mineira, alguns momentos marcados pela música que era uma grande paixão de Peter Lund e, provavelmente, possíveis aulas de piano para as jovens. Porém, um envolvimento amoroso entre eles era improvável e faz parte das lendas privadas criadas sobre o cientista.
Peter Lund viveu solitariamente no pequeno arraial de Minas Gerais entre 1835 e 1801, quando foi enterrado em terreno que adquiriu nos arredores de Lagoa Santa para servir de seu túmulo. Lund precisava de uma moradia fixa na região para, a partir dela, realizar expedições nas cavernas calcárias que a rodeavam. Lagoa Santa era um bom ponto estratégico para suas explorações, apesar de não ter os encantos culturais e sociais de outras cidades mineiras como Santa Luzia, Sabará ou Ouro Preto. Mas Lund estava focado na sua atividade científica e não buscava uma vida social que o desviasse de seu trabalho.
Lund comprou uma casa espaçosa na praça central do arraial, mas sem luxo e ostentação. Era um homem de hábitos simples. Vivia sozinho na casa principal e alguns funcionários, nas demais construções da propriedade. Outros espaços foram construídos na medida em que ele realizava suas escavações nas cavernas e precisava abrigar sua numerosa coleção de fósseis.
Peter Lund não teve filhos, mas educou Nerêo Cecílio dos Santos como se assim o fosse. Nerêo era filho de um empregado de Lund, o cozinheiro Luís Cecílio para o qual Lund tinha grande apreço e deixou bens em testamento. Como nos relata o próprio Nerêo, “quando fui para a companhia de Lund, tinha 12 anos de idade e o acompanhei até exalar o último suspiro, sentado à sua cabeceira, pranteando-lhe o desaparecimento.”
Lund assumiu a formação de Nereo, dando-lhe uma educação refinada que incluía vários idiomas, música, literatura e noções de História Natural. Inicialmente, pretendia enviá-lo para estudos na Europa, mas desistiu da ideia diante da resistência do garoto em se afastar da mãe. Pensou em mandá-lo ao Rio de Janeiro, mas resolveu ele mesmo assumir sua educação, pois como relatou em carta aos irmãos em 1875:
Me foi dada pessoalmente a oportunidade de guiar sua educação. Isso foi-me preferível por motivos morais. O Rio de Janeiro não prima como uma cidade modelo por esse ponto de vista. Também sua educação literária e científica poderia ser mais bem orientada por mim, e isso parecia-me mais importante que sua educação musical.
Nerêo Cecílio teve uma formação bem diferenciada na sociedade mineira do século XIX. Peter Lund o preparou para várias possibilidades profissionais na área da música, literatura, ciência, magistério. Nerêo falava fluentemente francês, alemão, latim, inglês e dinamarquês. Mas apesar de tamanha qualificação, a trajetória profissional de Nerêo não foi tão bem-sucedida como desejava seu pai.
Nerêo casou-se com Maria Cesarina Marques dos Santos e teve mais de dez filhos. Com a família numerosa, Nerêo mantinha vários empregos para sustentá-la, o que era uma preocupação para Lund.
Figura 1: Nerêo Cecílio dos Santos e sua esposa Maria Cesarina Marques dos Santos. Fotografia enviada para Eugen Warming por Nerêo. (Museu Botânico de Copenhague).
Juntamente com seus trabalhos, Nerêo conciliava as atividades como auxiliar de Lund e, quando este faleceu, foi beneficiado no testamento com bens, dinheiro e uma pensão vitalícia que foi estendida à sua esposa. Ambos receberam a pensão vinda da Dinamarca enquanto foram vivos.
Em carta aos seus familiares, Lund justificou sua doação a Nerêo:
Até agora ele tem admirado a mim como faria a um pai. Portanto, eu penso que me deveria ser permitido cuidar dele, baseado na sua devoção filial. [...] Como as duas ocupações que ele tem aqui dão muito pouco dinheiro, ele estará em uma situação muito triste quando eu morrer. Devido à relação especial em que Deus me colocou frente a esse jovem, vocês hão de entender, sinto-me na obrigação moral de prover seu futuro bem-estar no caso de minha morte. Eu não seria capaz de descansar em paz sem isso.
Quando o Imperador D. Pedro II visitou Lagoa Santa em 1881, Lund já tinha falecido e Nerêo o recebeu na antiga casa do cientista, como seu filho. Conversaram sobre o naturalista e Nerêo fez uma apresentação musical para a comitiva real. Anos depois, escreveu uma biografia sobre seu pai adotivo (O Naturalista, Imprensa Oficial, 1923).
Mesmo com o apoio financeiro de Lund, Nerêo passou dificuldades na pequena Lagoa Santa e se mudou para Curvelo em 1887 e, posteriormente, para Belo Horizonte. Manteve seus vínculos com a cidade e a imprensa de Lagoa Santa. Fez vários registros de suas visitas à comunidade.
Em Curvelo, trabalhou na fábrica de tecidos Cedro e Cachoeira, foi professor de música e recebeu o título de Major da Guarda Nacional. Há registros de que se candidatou a vereador em 1897 e obteve 35 votos. Em 1913, participou da criação da Escola Normal de Curvelo, sendo seu professor de música. Mais tarde, mudou-se para Belo Horizonte, residiu na Rua Fernandes Tourinho e faleceu em 18 de setembro de 1922. O túmulo da família encontra-se no Cemitério do Bomfim, na capital mineira.
O filho de Lund não teve uma vida brilhante e próspera como desejava seu pai, mas certamente teve uma trajetória bem diferente da que teria se não tivesse cruzado o caminho do naturalista dinamarquês. A vida de Lund, certamente, teria sido mais solitária e menos estimulante sem a presença de Nerêo Cecílio.
A vida privada nem sempre tem o mesmo brilho da trajetória profissional das grandes personalidades. A vida de Peter Lund e de seu filho adotivo, que passou quase anônimo pela História, são exemplos disso. Não há motivo para fazermos especulações, pois enxergar a humanidade simples desses sujeitos históricos os tornam mais próximos de nós, mais inteligíveis e mais reveladores.