Nem a Astrologia lhes resistiu! E criou um sistema de relações entre a configuração dos astros e a personalidade humana, com os seus vícios e virtudes, relações de que retira ilações...

Abrindo o séc. XVI, Andrea Mantegna pintou Minerva perseguindo os vícios do Jardim da Virtude ou Triunfo das Virtudes (1499 e 1502) para o Studiolo de Isabella D’Este. Num jardim com arcos, Minerva (ou Pallas Athena) caça os Vícios (a avareza, a ingratidão , a ignorância, o ódio, o mal, a ociosidade , a inércia, a sensualidade) observada, a partir de um nicho de nuvens, pelas três virtudes cardeais (Justiça, com a espada e as escamas, Temperança, com os dois vasos, Coragem, com os atributos de Hércules, i. e., a massa e a pele do Leão da Neméia) numa batalha sob o estandarte “Et mihivintatum matri succunite divi” (“Eu ajudo a virtude sagrada”). À esquerda, a árvore antropomórfica é envolvida por um filactério em latim, grego e hebraico traduzível por “Sê divino companheiro das virtudes, tu que voltaste do céu, expulsa de nossas esferas os vícios abomináveis”. A composição é complexa e tem sido analisada por muitos, todos reconhecendo nela o pensamento humanista embebido de cristianismo e de deslumbramento pelos clássicos, assim como a sua influência noutros autores (caso de Giovanni Antonio da Brescia e do seu díptico Alegoria da queda da humanidade ignorante: Virtus Combusta e A Alegoria do resgate da humanidade: Virtus Deserta, gravuras de c. 1500-1505).

Depois, o “désenchantement du Monde” (Marcel Gauchet, Max Weber) embebeu a matéria… Natalia Ginzburg autorrepresentou-se ensaisticamente n’As Pequenas Virtudes (1944-62) a meio do séc. XX, André Comte-Sponville encerrou o segundo milénio com o seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1995), um itinerário por 18 virtudes, e Helder Macedo abriu este milénio com o seu ficcional Vícios e Virtudes (2000). A lista é interminável.

No verão de 2023, tempo de anual dolce far niente, João Carlos Firmino Andrade de Carvalho colocou-nos nas malas Saliglia - Os Sete Pecados Capitais na Literatura e no Cinema (2023), reunindo textos correspondentes: desde a “Superbia – Soberbamente... ‘acidental’” (pp. 27-32), de minha autoria, e de “Avaritia – O Feitiço do Ouro” (pp. 33-60), de Ana Alexandra Seabra de Carvalho, passando pela “Luxuria – Da Luxúria... em três andamentos” (pp. 61-79), de Fernando Alberto Torres Moreira, pela “Invidia – Florilégio de invejas” (pp. 81-101), de João Carlos Firmino Andrade de Carvalho, e pela “Gula – Salvos pela Gula: uma análise do conto de Alice Vieira “O julgamento de Jerónimo Peixoto” e do filme de Roland Joffé, “Vatel”” (pp. 103-116), de Sara Vitorino Fernandez, até a “Ira – “A Cabeleireira”, de Inês Pedrosa, ou o cabelo versus a ira: uma história de misoginia” (pp. 117-137), de Cristina Costa Vieira, e à “Acédia – Quatro elogios da Preguiça” (pp. 139-164), de Ana Alexandra Seabra de Carvalho. 7 pecados, 7 autores, 7 textos… as artes em diálogo e a humanidade em análise!

Em 1998, Os 7 Pecados Capitais foram representados por Afonso Praça, Alice Vieira, Fernando Dacosta, Francisco Moita Flores, Francisco Simões, Guilherme de Melo, Inês Pedrosa, Mário Ventura. Em 1995, tinham sido abordados pelo filme Se7en, de David Fincher, com Brad Pitt e Morgan Freeman como protagonistas.

Poderia recuar ou avançar, pois o tema atravessa as artes e as letras.

Mas será que são mesmo só 7 os pecados mortais? E serão rigorosamente os enunciados? Os teólogos vão oscilando no número e na classificação, a humanidade na sua experiência e a arte na sua representação…Bento XVII acrescenta-lhes pecados modernos: a pressa, a manipulação genética, a interferência no meio ambiente, provocar pobreza, ser muito rico, usar droga, causar injustiça social (com preconceito e bullying). Enfim, pecados à lista. Ou às listas. Embora sem a vertigem de que fala Umberto Eco, pois o número é cuidadosamente calculado, retoricamente tratado e geometricamente representado. Tudo derivando da filosofia greco-romana e da bíblia e convergindo para o cumprimento dos 10 mandamentos (também eles com variações).

E podem ser ‘servidos à mesa’… a de Bosh organiza-os numa távola redonda bem diferente da arturiana e do imaginário cavaleiresco: episódios do quotidiano mais banal rodeiam uma íris em cuja retina emerge Cristo que tudo vê… o pecado saboreado e vigiado num olho.

Na verdade, inscrevem-se num xadrez bem arrumado, a chiaroscuro, que a patrística nos legou para classificar as acções consequentes: os pecados e as virtudes, lado a lado, numa oposição permanente, num contraste absoluto (Vaidade – Humildade; Avareza – Generosidade; Luxúria – Integridade; Inveja – Caridade; Gula – Moderação; Ira – Resiliência; Preguiça – Plenitude). Pecados entre capitais (graves e exigindo confissão: soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça) e veniais (menores, dispensando-a), em número variável, cujas listas se foram afinando e reformulando ao longo dos séculos e que Peter Binsfeld (1589) colocou sob a tutela de lista correspondente de demónios.

A arte representou diversamente essa dicotomização onde a hierarquização se elabora entre o capital e o venial (e as virtudes idem), às vezes, mostrando-os em combate, outras, apresentando as virtudes como vencedoras.

Um exemplo é o do programa de afrescos da Cappella degli Scrovegni (Pádua), concebida para peregrinação dos fiéis: as Virtudes (Prudência, a Fortaleza, a Temperança, a Justiça, a Fé, a Caridade e a Esperança) e os Vícios (Estultícia, a Inconstância, a Ira, a Injustiça, a Infidelidade, a Inveja e o Desespero) pintados por Giotto (1304-1306) alinham-se, respectivamente, na parede da direita e na da esquerda de quem entra na Capela, sinalizando a existência como uma caminhada em direcção à beatitude durante a qual o homem é auxiliado pelas Virtudes contra os perigos dos Vícios.

Outros, como Ramon Lull no seu Félix ou O Livro das Maravilhas (1288-1289), elencam 14 virtudes e 14 vícios e será Lull a oferecer-nos uma “Árvore Imperial” como um Espelho de Príncipes na obra Árvore da Ciência (1295-1296), representando o monarca o tronco por onde passam as virtudes que se harmonizam com a comunidade através de seu poder, e sinalizando os vícios que o tornariam tirano. Ressalve-se, no entanto, alguma preferência dos artistas pela representação das virtudes antes da modernidade… o livro aqui em questão é sintomático isso.

Enfim, devo travar a tentação de continuar… ou incorrerei, por meu turno, em pecado… Mas talvez possa voltar ao tema.

Felicitações, João Carlos Carvalho, pelo projecto e pela sua estimulante concretização!