Então despes a luva para eu ler-te a mão / E não tem linhas tua palma.

(Chico Buarque)

As técnicas de alfabetização e de ensino das práticas de leitura contam sempre com a certeza de um método tido como eficaz. Assim é ensinado nos cursos de graduação e licenciaturas em Letras e Pedagogia; tal certeza da metodologia se estende pela formação continuada na vida docente. Quando algo manca aí, a responsabilidade é sempre depositada na conta do aluno ou da família dele: eis a evidência do sentido dominante1. Proponho torcer tal naturalização e produzir um reviramento aí tomando como referência o texto Ler Lacan, lendo, de Marie-José Latour2 (2023) e alguns recortes de provas escolares divulgadas na rede digital.

O enigma que persiste em relação ao aprendizado à leitura indica que ela não poderia ser reduzida à aquisição de uma técnica, estando nela envolvida uma parte do real. 2

Algo do real atravessa a técnica e faz considerar que o impossível está aí a dar notícias de um permanente desencontro entre a palavra e a Coisa3. Irredutível. A psicanálise de Freud e Lacan tomaram a não-proporção no centro da experiência humana. Lacan, por exemplo, retoma o modo como, menino, debruçava-se sobre a imagem do livro La moitié de poulet com interrogações que o acompanharam em diferentes seminários:

Ao decifrar o retorno, ele tratou da parte da dimensão da elocubração dessa decifração, dimensão que vale para toda decifração, e que dá lugar a uma outra dimensão. O que chamamos de ler. Lacan retorna ao que, quando criança, o deteve. Como acontece com muitas crianças, o que deteve o menino Lacan não foi tanto o texto, e sim a imagem. Aqui está ele a procurar na imagem do seu livro de leitura o eco do que decifra e do que ouve no título. 2

O “eco” continua a sustentar o sujeito em seus volteios por ler ao longo da vida e em seus modos de escutar, compreender e transmitir. “A dimensão que vale por toda decifração”, abre-se diante da imagem e não se fecha, retornando e fazendo perdurar o enigma que não se explicou, tampouco se esclareceu. Trata-se do livro com o qual Lacan menino aprendeu a ler, uma versão escrita pelo educador e escritor infantil Jean Macé, publicada inicialmente em 1866. Uma história com várias versões orais, cuja trama centra-se na travessia de uma pequena galinha, que tendo emprestado moedas ao rei, passa por diferentes adversidades e situações de desonestidade na tentativa de recuperar o montante. Sobre ele, Lacan4 afirma:

Meu primeiro livro de leitura tinha como primeiro texto uma história que se intitulava História de uma metade de frango. Era verdade, ele falava disso (...) O que eu ensino, desde que articulo algo da psicanálise, poderia muito bem se intitular História de uma metade de sujeito (...) A imagem da metade de frango era o perfil do lado bom. Não se via a outra, a cortada, aquela em que a verdade provavelmente estava, posto que se via na página do lado direito a metade sem coração, mas não sem o fígado, sem dúvida, nos dois sentidos da palavra. O que quer dizer isto? Que a verdade está escondida, mas talvez ela só esteja ausente.

Tomar o frango, o sentido e o sujeito às metades não é o forte das instituições. A dimensão da incompletude, o acolhimento do insabido, o fomento ao enigma e o impossível passam longe das práticas escolares de leitura5, geralmente sustentadas pelos postulados da transparência e literalidade da língua, além da compreensão dos elementos narrativos a partir de categorias tidas como exatas. Desconsidera-se a pergunta:

Como confiar na representação? Que ela seja dada pela imagem ou pela palavra, a representação salienta o corte entre elas, o corte entre a imagem e a palavra, o corte entre o real e a representação.2

Voltamos ao impossível concernente à representação, à leitura e ao sujeito tal como estabelecido pela psicanálise freudo-lacaniana, instância que não é alheia aos estudos da linguagem. Saussure, por exemplo, deparou-se com ele na aventura anagramática dos saturninos6, implicando-se em apresentar como o próprio sistema que funda a língua pode siderar-se no encontro com o poético. Ainda sem uma compreensão do que estava em curso, ele parece assemelhar-se ao trabalho freudiano no desejo de tocar a equivocidade a partir da (a)língua. No caso do genebrino, os cacos de sons que pipocam nos versos, os deslizamentos de nomes próprios não possíveis de conter, as versões diferentes de uma mesma lenda produzem eco. Para o inventor da psicanálise, os modos de interpretar os sonhos das histéricas, de escutar os tropeços de pacientes nas falas e de observar os pedacinhos de palavras no curso de um relato produzem eco. As “pedras de espera” estavam postas.

Lacan já havia identificado em Freud as muitas pedras de espera no campo que ele havia aberto. Essas pedras são tanto os conceitos originais necessários para ordenar a novidade da descoberta e carregam com elas todo um mundo de perguntas. Ler é então reabrir as questões, vasculhar novamente as coisas silenciosas.2

Abrindo questões, tenho observado recorrentemente em diferentes redes sociais e páginas digitais, trechos de provas e avaliações escolares nas quais ecos de leitura estão em curso.

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Para além do efeito chistoso dessa resposta e da equivocidade como constitutiva da língua, é possível tomar o enigma que se abre aqui para o sujeito-aluno. O “seu nome”, nome do numeral, nome dele, nome próprio, 10 Bruno passam a marcar, de certa forma, a metade do frango sem coração, e com fígado. Sim, é do nome próprio que se trata, ainda que pela metade. Dificilmente um sujeito docente, inserido no contexto escolar das práticas de leitura, aceitará essa resposta como correta ou possível. De outro lado, para aquele que responde, é óbvio, certo e natural que “seu nome” seja Bruno, repetido dez vezes. O impossível arreganha seus dentes.

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Reduza é tomado como sinônimo de diminuir visualmente, o que é feito de forma obediente e caprichada, haja visto o modo como desenha a proporção e o volume em gradativa redução. A metade do frango e do sujeito dividido é preciosa quando se avalia esse material: há um grito do impossível. Seja no ato de ler, seja no modo de responder, seja na forma da transmissão, seja em qualquer instância ou posição em que o sujeito se coloque: há sempre um saber que não se sabe4, e isso não é objetivo na sala de aula. Saber de outra ordem, é certo. Mas que indica a injunção de (i)leitura à (a)língua, que ecoa em diferentes momentos das práticas escolares e docentes.

Ensinar e transmitir, perguntar e responder, colocar o saber escolar em questão passam por aí. Temos com Freud3 que educar é uma das tarefas do impossível, ou seja, fracassante e ponto. Sobre isso, é preciso simbolizar e insistir por dizer, ainda que sem garantia.

Os ofícios impossíveis se tornam possíveis sem, contudo, ter a garantia de que eles venham a obter resultados tangíveis e definitivos. Ao contrário, eles têm a ver, de um lado, com o real, o impossível, e eu acrescentaria o invisível, o imaterial e, portanto, o não mensurável e, de outro lado, com a contingência que é também imprevisível.7

Considerar isso pode indicar uma outra via para ler as provas apresentadas aqui, talvez com a travessura do humor, talvez com a densidade singular de cada sujeito. A verve revolucionária de Gadet e Pêcheux8 indica que o sentido sempre pode ser outro e que alíngua é condição de poesia. Que possamos escutar ambos.

Notas

1 Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora Unicamp. [1970-1971] 1997.
2 Latour, M.-J. Ler Lacan, lendo. In: Lacan no presente. Colette Soler (org.). Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições; Fórum do Campo Lacaniano Rio. 2023.
3 Freud, S. Análise Terminável e Interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 23. Rio de Janeiro: Imago, [1937] 1980.
4 Lacan, J. O avesso da psicanálise. Seminário Livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [1970-1971] 1992.
5 Romão, L. M. S.; Pacífico, S. M. R. Era uma vez uma outra história: leitura e interpretação na sala de aula. São Paulo: DCL, 2006.
6 Starobisnki, J. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. Tradução Carlos Vogt. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
7 Lollo, P. Os ofícios impossíveis e o chamado do real. Revista Reverso vol.40, no.75 Belo Horizonte. 2018.
8 Gadet, F.; Pêcheux, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Campinas: Pontes Editores. [1981] 2004.