Gente das cidades grandes, sentem aqui, preciso de falar convosco.

Lavra e semadura (a terra)

Hoje bato com força no teclado, escrevo aqui o coração ferido do interior.

E nós, senhores? Vivemos numa morte esquecida como se o país estivesse a ser, meticulosamente, construído à nossa volta.

Não nos queixamos muito, porque sabemos que essa morte esquecida, sempre é menos má na natureza, do que no dióxido de carbono, no trânsito, nas garrafas partidas no chão, na calçada gasta pelo tempo. O tempo aqui não gasta, porque há um verde que protege tudo dele.

A única coisa que nos falta mesmo é alguém que ouça os nossos suspiros de vez em quando.

Então ouçam! Sentem-se um pouco ao lume, há bebidas ali na pequena arca, à beira do rio, se quiserem.

Sentem-se aqui à fogueira e ouçam as histórias que as estrelas nos foram contando por várias gerações.

Sei que na cidade não se conseguem enxergar tão bem os astros, por isso, o que vou partilhar vai ser-vos uma história inédita. E espero que levem, no fim, estas palavras no peito, já que tantas outras se foram recusando a ouvir.

Acaso conheceis as terras do demo? Pois explicá-las-ei. Desde novos a ouvir o conto da formiga e da cigarra. Depois berram que a fruta queimou da geada. Depois vem um vento e tomba-nos a casa. A terra mirra, infértil, do salgado choro que vertemos pelo tempo adverso.

Podem saltar para a Germinação. Sei que para muitos de vocês, a história só começa aí...

Todavia...

Atenção! Bem sei, bem sei que me alongo numa aborrecida introdução, entretanto, é exatamente esta a sensação que pretendo provocar em vocês.

Dói? Dói não ser na rapidez do metro, nem dos carros?

Quantos de vós esperariam o rebentar irreverente, no entanto, lento, da semente?

Só depois de a terra ser rasgada, só depois de nela romper um texto verde e viçoso conhecerão o penoso tempo que nos aflige após a sementeira.

Por enquanto, são tudo apenas terras. Solo. Exatamente estas terras onde os mitos confluem num violento encontro contra a realidade, e a ela se enlaçam vibrantes! Perdem-se de vista, nos horizontes bruxuleantes, os dias que poderiam ter sido diferentes.

A vida, aqui, longos séculos foi moldada pela terra. O trabalho árduo, imposto, mesmo que pudesse não dar frutos. Festejavam-se e choravam-se os sóis e as chuvas que tanto demoravam quando precisos. Pareciam vir sempre atrasados. Deviam vir da cidade e demorar-se no trânsito, certamente...

A terra nem sempre é certa, mas foi ela que sempre amparou as nossas quedas, não o outro, mas a fria terra indiferente. Este é o sumo resumo de tudo o que digo.

De que falo eu?? Falo do desconhecimento geral. Das teorias que se fazem sobre o interior nos grandes centros culturais. Correndo o perigo de ser mal interpretado, arremeto-vos esta frase: o que sabe do interior quem nunca o penetrou substancialmente?

Geminação (a planta)

Há muitos anos atrás andei a viver nuns meios mais urbanos do país (digo andei, porque foi sem sentir que lá devia estar), com autocarros, comboios, atrações turísticas, praças cheias de bares, académicos e teses. Pombos e livros. Fezes e ouros.

Nessa época, um académico reconhecido que teve o dissabor de ser meu docente, do qual eu era fervoroso ouvinte, teceu um interessante comentário.

Deixo, em suma iteração, a sua fala. Uma daquelas conversas pseudointelectuais que acontecem nas universidades e que, certamente, todos vocês conseguem imaginar:

“Pensem sobre isso, no Reino Unido, de onde eu venho, um dos hobbies mais comuns é a jardinagem. O mesmo não acontece aqui, em Portugal... porquê?”

Juro que dava para ler na cara de alguns colegas um laivo de gozo, um “porque não somos xóninhas”, mas o silêncio generalizado impôs-se.

“Acaba por ser uma questão de identidade cultural. Porque haveria um país, que tantos séculos teve o seu povo a viver da agricultura de subsistência, divertir-se a plantar coisas?”

Esta associação entre o fazer brotar a uma noção de trabalho obrigatório, doloroso, diga-se de passagem, deve ter-nos afastado de tão belo hobby, certamente. Pois iriamos nós ter gosto em pegar nos pequenos e fofos ancinhos para ajeitar o quintal, com as mesmas mãos que durante séculos carregaram o carrancudo peso dos calos da enxada?

Na altura, aquilo reverberou em mim, fez demasiado sentido. Mas o método indutivo utilizado nesta situação desconhece, propositadamente, o que se passa no interior. Falha-lhe, à vista, o eterno e único romance do Homem.

De facto, a terra exigiu de nós esforço. Todavia, não há esforço sem amor e, se o há, é passageiro. Porque todo o esforço, mesmo sem amor, vai criá-lo. Desde rebentinhos de carinho até imponentes arvoredos de paixão devota.

Agora, uns anos depois de voltar para a minha terra, vejo. Hoje, vejo a falácia. E estou aqui para vos dar provas disto que, sendo sincero, valem o que valem: um pinheiro num pinhal. Aqui vai: A minha avó viveu a vida nas e das terras. E sempre, desde que me lembro, roubou pezinhos a todas as plantas que gostava, para depois plantar no quintal. Roubava às quintas, outeiros e, talvez, até a quintais alheios, mas isto não fui eu que vos contei, ok?

De qualquer das formas, não é meio discutível falar em roubo quando nos referimos à natureza? É possível roubarmos natureza, ou só a estamos a mexer de um lado para o outro como fazem os restantes animais? E assim foi a sua existência durante uma boa maquia de décadas, sempre colecionando vida à volta da casa onde viveu a maior parte da dela. Era adorável ver como lhe enchia os olhos qualquer pergunta que eu lhe fizesse sobre alguma flor.

Ceifa e apanha (nós)

Foi com a minha avó que descobri que as cerejas melhores eram as comidas no topo da cerejeira, roubadas aos outros. Que as figueiras eram árvores tímidas, porque nunca mostravam as suas flores. Que não era fácil plantar ciprestes e ainda menos fácil vê-los crescer imponentes e calados à porta dos cemitérios.

Acredito que estas aprendizagens são menos rasas aqui. Porque elas não são só sobre plantas.

Mas retomando a minha figura de avosidade: era absurdo o quão lhe brotava vida das mãos. O áspero das palmas gastas pela terra parecia, em dádiva retribuída pela terra, fazer tudo rejuvenescer.

O quintal à sua volta parecia florescer com as suas palavras. Em alguma coisa devia estar relacionado com a conjugação dos verbos na segunda pessoa do plural. Mas isto é teoria para outra crónica. Bendito “vós” que já ninguém sabe usar!

No fim do dia, o vigor que a minha avó e os seus contemporâneos impunham fervorosamente a estas terras abandonadas, era-lhes, de algum estranho e cósmico modo, imputado de volta.

Isto vos garanto! Porque os velhos da minha terra, que viveram muitos anos do campo, chegam a irritar de tanto vigor.

Tenho, aliás, a secreta convicção de que a ordem de vida deles não é deixar de trabalhar nas terras pela idade não permitir. É antes decidirem permitir à idade vir, por escolherem parar de trabalhar nas terras (com a simples razão de já terem dado mais à terra do que ela a eles). Chegam, desse modo, à humilde conclusão, como quem decide tomar um café depois de almoço. “Bem, já chega, vamos lá.”

Assim, lá permitem que a calma, natural e reconfortante presença da morte lhes chegue serenamente.

Estiveram a vida toda a preparar a terra para os receber calmamente. Não fazemos jardinagem, porque isso seria roubar a metafisica à atividade. Embora pobres de palavras e pobres de pessoas que se possam expressar sofisticadamente, somos ricos de gente que compreende eficazmente.

Vamos embora como vivemos. Roendo as unhas com medo da geada, mas na plenitude sensata, confiantes de que a terra não nos vai falhar quando cairmos.

Acreditem, é assim que se morre aqui.

Acreditem, para ser mais fácil para mim acreditar também. Acreditem vocês por mim, que tanto quero e tanto tento.

Já agora... enquanto lá fora dançam a morte a vida, entrelaçadas no céu estrelado, sobre todos os plantios orgulhosos... mesmo ainda antes de irem, queria só deixar-vos uma pergunta... Sabem o que são perpétuas? A não confundir com os cravos-de-defunto!